sexta-feira, 3 de abril de 2015

Do que já sabia, mesmo antes de saber

  Véspera de feriado, a avenida de manhã parece menor, mais vazia e bem menos urgente, que nos outros dias da semana; um homem lava a calçada, joga água gelada com um balde azul e esfrega obstinado com uma vassoura velha parte do passeio público, passo na beirada da rua, hoje, sem risco aparente de atropelamento, um menino passeia com seu cão, que cheira a minha perna, estou de calça, mas imagino seu focinho gelado tocando a minha pele, a respiração urgente dele e a sua expiração morna; ele não late eu não me afasto, mas não estreitamos relações, preciso continuar no caminho oposto ao dele. Do outro lado da avenida, uma mulher apressada, puxa a filha pequena e a coloca no colo, ela parece reclamar, mas a mãe tem pressa; não consigo escutar, mas imagino sua voz reclamando pela autonomia desejada. Mais a frente, perto da escola tradicional, um grupo de adolescentes gargalha enquanto caminha, ouvem música, deixam algo cair, gritam alguma coisa que só eles entendem e, depois, sorriem mais, um garoto para para amarrar o tênis e logo corre para acompanhar os seus, enquanto passam por mim, parecem mudar a rota dos ventos; eles têm o poder da revolução e nem sabem.

  Na escola, algumas crianças em fila, se organizam num passeio pelo pátio. Todas as escolas do mundo, todos os pátios e todas as crianças de escolas pelo mundo, se parecem sob determinadas perspectivas. O grupo de adolescentes mudou o clima da cidade, agora é um quase frio e, por isso, o vento me lembra uma outra época. Começo pela voz antiga, que eu ainda lembro.
 
  Ela pede que façam uma fila, antes, dá algumas instruções, fala sobre a atividade que farão, antecipa algumas questões práticas: precisam fazer silêncio ao passar pelos corredores, os passos devem ser lentos e as pisadas suaves, sem atropelos, para não chamaram a atenção do resto da escola, devem deixar as mochilas na sala, não precisam levar lápis ou papel e a fila só pode ser desfeita quando chegarem ao pátio do primeiro andar. Não é difícil manter a ordem, se a recompensa é a liberdade, especialmente quando se é criança, sem perspectiva muito próxima de abandonar as quatro imperiosas paredes.

  O grupo chega ao primeiro piso, seguem até a quadra de esportes descoberta e a professora organiza uma roda no centro do espaço cimentado. Enquanto todos estão sentados ela inicia a atividade. Primeiro, é necessário silêncio, depois precisam ouvir bem cada recomendação, sem anotações, sem reflexões ou debates coletivos, a  compreensão, ela sugere, será individual e interna, sem avaliação ou nota. Pede que fechem os olhos e depois, que sintam o sol de maio. Fala do calor dele na pele, da sutileza da sua energia esquentando cada roupa e, mais nada, se cala. São crianças de nove ou dez anos e ninguém se move, só sentem como lagartos espichados ao sol, a energia do astro. Ele começa sutil, depois vai se tornando forte e mais forte e por mais que tenha estado sempre ali, agora, parece ser mais essencial que nunca. O sol é pela primeira vez aprendido sem palavras ou imagens; sentir é a matéria do dia, ninguém disse que isso também poderia ser aprendido na escola. Depois de alguns minutos, uma aula talvez, seguem para a sala, ainda mais silenciosos do que vieram, sem resistência, sem luta. São cerca de trinta crianças satisfeitas com uma atividade muito prosaica.

  No outro dia, a professora não voltou. Sabia da partida há tempo, mas preferiu ignorar a despedida, porque talvez soubesse ou, ao menos, gostaria muito, que nunca se desprendesse definitivamente daquelas outras vidas com as quais compartilhava muitas horas nos últimos meses. Algumas crianças choram quando descobriram a mudança. Eu chorei; de pena, de saudade antecipada, de abandono sentido, mas principalmente pelas lições que ela não nos deixaria mais. 

  Subo a avenida e o vento fino, pontiagudo, me lembra ela, eu sinto, só sinto e ela nunca mais foi embora de mim. No entendimento das pequenas coisas é que a narrativa do mundo se constrói. Acho que as nossas relações são processos que complicamos demais, quando as escolhas possíveis são sempre muito simples. Ela foi a primeira a dizer que o sentir era demasiado importante, ela foi a primeira que valorizou o que nós sempre podemos e somos, mas que invariavelmente não é requisitado em avaliação nenhuma. Sentir, ela ensinou, é o nível mais sofisticado de sabedoria. 

  O vento que me acompanha até em casa é também um entendimento meu, nada é mais importante do que aquilo que trazemos dentro de nós e que não podemos comunicar, mesmo que tentemos muito. O que se passa com cada um de nós, só nós podemos suspeitar, ninguém nunca poderá alcançar. O sol do pátio, o vento da avenida, os focinhos caninos passam por muitos, mas são só meus enquanto eu souber senti-los - só este é um egoísmo perdoável.


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