quarta-feira, 29 de abril de 2015

Emudeci

  Primeiro, pareceu que fosse culpa da umidade do clima, a queda na temperatura e as madrugadas no piso frio sem meias. Tomei chá, muitos chás, de todos os tipos que me recomendaram, às vezes com mel e limão, outras só da erva puríssima, que até desconhecidos me ofertaram. Vi a minha cozinha se tornar um herbário medicinal variado. 

  Vejo como as pessoas são solidárias com a gripe alheia, acho é o tipo de necessidade que nos sentimos capazes de acolher, porque é descomplicada, não requisita muita intimidade, muita conversa, nem entendimento, gripe é gripe, não tem a minha perspectiva ou a sua, é só gripe, é a experiência mais universal; é o tipo de dor que nos conecta, sem necessidade de invadir uma parte recôndita do outro.

  Mas a gripe se prolongou, os chás fizeram mais efeito pelo conforto da generosidade, do que pelas propriedades mesmo de cura; perdi a voz, acordei muda. 

  Pensava que a ausência temporária de voz não me incomodaria, porque o silêncio sempre foi o meu essencial.  Mas talvez, ultimamente, tenho sido menos silenciosa do que me avaliava. As primeiras horas do dia foram as mais tranquilas: caixas e catracas eletrônicas, mensagens escritas, nenhuma necessidade de um bom dia sonoro - o mundo contemporâneo não reconhece vozes -  o almoço íntimo, com gente que assistiu a minha voz me abandonar; manhã sem necessidade de explicação oral, tranquilo até. Mas depois do meio dia, as coisas se complicaram, recém-chegada a um novo meio, a um espaço diverso ao meu, a palavra é quem me guia. Ela me possibilita encontrar os lugares, desde salas a armários, até cantina e banheiro, ser salva de sinuosos corredores, encontrar apagadores de luz ou um lugar com sombra. Nesta manhã, perdi-me e, sozinha, me reencontrei sucessivas vezes. No meu silêncio soube encontrar também as saídas. Mas conhecer as pessoas com quais conviverei por algum tempo foi a ação que demandou mais esforço, me dediquei às expressões faciais, bloquinhos e caneta e muitas desculpas, pelo que nem reconheço como responsabilidade unicamente minha: emudeci também por direito.  Achei que era gripe, mas era também necessidade de silêncio.

  Emudeci não porque não tenha o que falar, pelo contrário, tenho tanto que as cordas me impediram. Emudeci, porque enquanto falo não escuto a vida ao meu redor. Porque muda aprendo mais, escuto, fico mais sensível à comunicação do outro, aos meus próprios gestos, minhas mãos coreografadas, meus olhos que falam tão mais por mim do que a minha garganta. Emudeci para abrir espaços, ao outro, as novas formas, aprender que a opinião alheia, embora tantas vezes me assuste é legítima e existe, mesmo que eu utilize as melhores palavras e a voz mais enfática, elas continuarão a existir e terei que viver com e para além delas. 

  Emudeci, porque calada sobrevivo muito bem e penso que calados resolveríamos mais dramas do que arriscando uma enxurrada de palavras nocivas ou, apenas, vazias de sentido. Emudeci para existir mais num outro plano, de outro jeito e para respeitar mais o meu próprio silêncio e o alheio. Emudeci pelo chá e acolhida de estranhos, para entender os limites do corpo e repensar os compromissos que eu mesma me imponho; perdi a voz para, finalmente, falhar de maneira pública, não poder ignorar ou acobertar que viver é para além de se comprometer,  é também, tantas vezes, faltar com a palavra.

  Emudeci hoje, graças a Deus. Meu corpo inteligente, disse-me: Cale-se. Não obedeci, mas acordei muda e vou dormir grata. O que não fazemos conscientemente por nós, a natureza nos impõe o limite. Calar também é um direito a que devemos além de respeito, sincera obediência. A voz interna não se cala, ela é quem falará por mim estes dias.


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