segunda-feira, 20 de abril de 2015

Já não importa o número de páginas

  No caminho desconhecido da intimidade nós crescemos muito. Mais que ao outro, a intimidade nos revela a nós mesmos. Só quando o meu olhar é dirigido para fora, de verdade, eu me vejo. Alcanço as minhas possibilidades. Porque o que não sou, fala muito mais de mim, do que aquilo que busco me convencer que é meu. Ver o outro acrescenta, rompe os limites, liberta da mediocridade comezinha de nos contermos em nós, ir ao outro é o próprio exercício de sobrevivência.

  Passo alguns minutos contemplando o homem na minha sala, ele segura o livro que lhe dei com a suavidade que pode, as mãos grandes, o desacerto das páginas de papel no contato com a pele demasiado grossa.  E mesmo que ele não possa sentir a textura do material, mesmo que não tenha a compreensão da beleza que eu assisto agora, ele parece um leitor tão sábio, tão antigo. Passa cada página como se fosse tudo o que tivesse na vida, demora em cada frase, vez ou outra, flagro seus olhos voltando sobre um mesmo trecho duas ou três vezes. Não acho que seja por falta de compreensão, mas estima mesmo pela palavra que lhe aconteceu agora. O  livro fui eu quem escolhi, fiz dedicatória e embrulhei em papel reaproveitado, mas agora, em suas mãos, parece ser tão dele, tão colado ao que ele é, que me torno só espectadora da relação do homem com o seu livro.

  Ele é o leitor que eu quero ser na vida, sem pressa para a próxima página, tomando um gole por vez, calmo, inexato, voltando e demorando sobre cada frase o quanto sua vontade disser que  basta. Vê-lo tão entregue, sossegado, dono de cada página, me mostra muito do que posso ser na vida. Ele e seu livro, eu e minha trajetória. O leitor paciente e constante, sem desejo de fim algum, recolhendo os regalos que um desconhecido oferece, ele não despreza nem os espaços, os  parágrafos, as entrelinhas; lê também o que não está escrito, mas que caberia perfeitamente no texto. 

  Desacostumado com as letras, ele lê com atenção maior, carrega a paixão da descoberta; o saber é limitado, descobrir é a aventura da libertação. No sofá caramelo da sala, ele é o homem mais livre do mundo, solta amarras, abre correntes, destrói  cadeados, sem nenhuma força bruta. As mãos grossas passam as páginas com a ternura de uma criança e seu brinquedo delicado. No sofá da sala não há luta, nem resistência ou intimidação, mas suavidade, rosto plácido e sorrisos múltiplos, ora pela novidade, ora pela aceitação da sua condição permanente de aprendiz. Quero o livro de volta, quero o leitor me olhando,  como olha agora para o livro. 

  Não. Quero olhar para ele e seu livro o resto da minha existência, sabendo que não será possível, olho para o infinito que nos une e separa, ajeito o chinelo no pé e suspiro como meu antepassado: - Eita, essa vida... Ele me olha, sorri e eu pergunto se tem fome. Mas ele se alimenta do que tem nas mãos. Ele me ensina a ler a vida demoradamente e é assim que tem que ser. Quando eu olho para ele, me vejo mais nítida do que se olhasse para um espelho.



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