sábado, 2 de maio de 2015

Os dias bonitos sem sol

  No décimo primeiro andar sou a terceira a chegar, as outras duas mulheres, que acabam de se conhecer, me olham, uma delas sorri, mas continuam o assunto. A menos receptiva parece desabafar sobre algum problema, enquanto a mais solícita e sorridente a ouve calmamente e me fita. As relações de amizade, antigas ou recentes, duradouras ou efêmeras quase sempre se sustentam muito assim, da necessidade de um e da disponibilidade de um outro. Arriscado é quando os papéis nunca se invertem e o necessitado nunca muda de lugar. 

  Em quase duas horas de conversa, ambas se mantiveram na mesma postura da minha chegada: a emissora aflita e a receptora serena. Falavam de filhos, vez ou outra a ouvinte também conseguia expressar sua opinião. Compreendi, entre as várias histórias seguidas e conectadas,  que a filha da mulher falante faria uma viagem de intercâmbio e ela era contra. "Muito nova, mulher, frágil, imatura, cabeça de vento", era como ela justificava o seu temor. Para dois segundos depois, falar do quanto a conquista da garota a orgulhava: "Filha de pobre, esforçada como ninguém e inteligente, muito inteligente e sensível, a melhor...". Só nesse instante, passei a gostar da mulher que falava tanto, porque vi medo e amor entrelaçados; era materno e justificável, ainda que muito injusto com escolhas que ela jamais poderá ser responsável.

  E acho que este foi o instante da outra mulher também gostar mais da sua interlocutora e desejar salvá-la de uma ilha de sentimentos que ela parecia conhecer. As relações de amizade se fortalecem nas identificações, quando percebemos que o outro fala uma língua se não igual, ao menos muito parecida com a nossa e, também, nas projeções, quando pensamos ser possível salvar o outro de uma estupidez que já cometemos.

  A mulher de ouvidos tão disponíveis tinha um nó na garganta e eu o senti aqui, depois das primeiras frases dela. Olhando para teto, de uma sala sem janelas, como se apreciasse um céu de verdade,  num suspiro comprido, que eu reconhecia de outros lugares e noutras pessoas, seus olhos se encheram de alguma lembrança que jamais poderemos alcançar. Ela falou sobre o filho do meio, que desde pequeno queria ser astronauta, que achava engraçado, bem bonitinho, um menino muito sonhador, mas que mesmo crescido continuava muito "aluado", que tinha muito medo também que os filhos se afastassem dela. Mas que, agora, todas as noites, sonhava muito que filho era um astronauta. - Ao menos saberia o lugar em que ele estava.

  No décimo primeiro andar uma mulher é, finalmente, calada pela dor maior que a sua; no décimo primeiro andar duas desconhecidas me ensinam algumas perspectivas em que o amor pode ser visto.

  Uma olha para o céu imaginário e pensa se ele, de repente, não está na lua. A outra olha para o celular, vê uma mensagem da filha e acho que responde. Sonho que ela a mandará para a lua ou qualquer outro lugar que a filha escolher.

 As asas dos outros, são o que de mais preciosos eles têm. A mulher que vê beleza em um dia sem sol confecciona as asas de um filho perdido, daria o filho dela de volta se pudesse, seria sua filha se isso diminuísse sua dor. 

  O amor tem medo, mas  liberta, a lua é um caminho bem próximo, às vezes. Os dias são bonitos mesmo sem sol e o céu é possível no décimo primeiro andar numa sala sem janelas. Já as asas dos outros, devemos, mesmo que doa, deixar que os ares tomem conta delas.



Nenhum comentário: