sábado, 27 de junho de 2015

Alguém para soltar as mãos

   Não ganhariam um olhar mais demorado meu se não fosse pela possibilidade de admiração tardia, não saberia de suas existências se eles não arrebatassem o meu olhar com a gentileza simples de gestos desinteressados, afetuosos e recíprocos. Mesmo quando é tarde sem sol e as nebulosas escondem a luminosidade num dia frio, ainda assim é possível contemplar estados de alma que nos aquecem, nos fazem ver para além do dia ruim e difícil, o que nos pode ser sempre acessível, bastasse que abríssemos os olhos.

   Não sei quando ele chegou exatamente, não tinha reparado; estamos cercados a todo tempo por gente de quem não nos damos conta, por quem não nos interessamos especialmente, gente que acaba por fazer parte do cenário, como se já estivessem ali desde sempre. Vemos a fachada nova da loja ou prédio, mas não percebemos os rostos das pessoas, suas faces contentes ou tristonhas, os medos que carregam nas costas curvadas, os sonhos que trazem nos olhos brilhantes ou as esperanças que apertam nas mãos, junto das sacolas de supermercado. Enxergamos o semáforo com defeito, o buraco no asfalto, o carro que ultrapassou a faixa de pedestre, mas não somos capazes de perscrutar um rosto novo por dia. Nos incomodamos com os flanelinhas que juram que fazem a segurança do nosso automóvel, mas não nos sentimos profundamente gratos quando alguém nos ajuda a encontrar um endereço, o "obrigado" é automatizado, sem nenhuma troca de olhar.

  Mas um homem quebrou o ciclo de cegueira, quando se postou na porta do ônibus lotado, deixando  cada passageiro encontrar o seu lugar, para só então ele assumir um lugar para si. Bastou o gesto trivial, mas incomum, pelos meios que tenho frequentado, ao menos, para que eu o visse pela primeira vez e para que meus olhos insistissem em acompanhá-lo por todo o trajeto. Mas já na próxima parada o objeto da minha contemplação me inspira ainda mais, quando desce até a porta e ajuda uma senhora  pequenina, cujas tranças mais cinzas que o clima, grudadas no alto da cabeça, são atrapalhadas pela falta de jeito do homem gentil, mas ela não se incomoda, esquece a falta de perícia e é grata pela disponibilidade de ajuda. Sentam juntos, lado a lado, no primeiro banco do ônibus, os dois únicos disponíveis. E, então começam uma conversa sobre o tempo cinzento, falam de frio e gripes, ela compartilha uma receita caseira para tosse "limão capeta - aquele bem alaranjado, sabe qual é? - com mel e própolis", falam do aumento dos preços de alimentos e remédios, das comidas típicas de festas junina, de flores, dores nas juntas. As amizades começam assim: leves, descontraídas em lugares improváveis, entre pessoas que, até então, nada partilharam, mas se olharam nos olhos e resolveram estender assunto, ofertar afeto, ocupar as carências do outro, sem pedir troco algum.

  De repente, a senhora percebe que seu ponto de chegada se aproxima e, só então, ela constata também, que ela e o homem gentil ainda se davam as mãos, constrangida pela entrega ela pede desculpas pela inconveniência, diz que é coisa de "gente velha", com "cabeça esquecida" e pela terceira vez, em uma só viagem de ônibus, ele me salva de um dia frio e difícil e me faz gostar ainda mais dele e acreditar nos homens dos ônibus. Diz que foi ele quem permaneceu com sua mão na dela, que macias e calorosas aqueceram a dele. Verdadeiramente grata pelas gentilezas e em retribuição à amizade nascida e manifestada numa curta viagem de ônibus, antes de descer ela agradece: - Obrigada pelas mãos, rapaz. Obrigada pela conversa boa. 

  Ele é grande, os olhos dela dizem isto a ele, mas é humilde também e volta ao seu assento,  depois de ajudá-la descer, esfregando suas mãos uma na outra, lamentando pela falta que a companhia inesperada lhe fará o resto da viagem. Na gentileza dele vejo a possibilidade de aprendizado ilimitada, quanto menos nos protegemos dos olhares do outro, maiores são os espaços e a entrega para o que vem de fora. Que ele tenha sempre alguém de quem soltar as mãos; melhor é suspirar pela falta do que se teve do que sentir saudades do que nem se sabe por onde anda. Na amizade deles eu também me senti mais aquecida e, finalmente, assisti a um céu mais iluminado. Alguém para soltar as mãos é mais um desejo anotado no bloquinho trazido na bolsa.



Nenhum comentário: