segunda-feira, 29 de junho de 2015

Sobre um tempo que não sei

   Saio de casa mais tarde do que gostaria, conto os minutos no relógio de pulso emprestado, como se lutar contra eles salvasse-me a vida. Para cada quilômetro uma meta a ser batida: hoje só quero ir mais rápido do que ontem. Esqueço o frio, mal ouço a música, coleciono semáforos vermelhos e só dialogo com as setas dos automóveis,  a pedrinha no tênis fura a meia, fere o pé, mas só vou perceber quando já estiver no chuveiro. Eu não tenho medo, não tenho medida, passo mais rápido do que qualquer ponteiro, durante cinquenta e sete minutos, eu engano o tempo. Os segundos são mais lentos que os meus passos, eles até tentam, mas não me acompanham.

  Na chegada para o derradeiro quilômetro, uma frase no para-choques de um caminhão me desestabiliza, leio: "O passado não passou". Minha visão tem me enganado um pouco, especialmente se a distância é longa e a caligrafia do artista é muito desenhada. Não tenho certeza do que está escrito, mas estou segura do que eu leio. O passado não passou...o passado...

  Muito pouco do que vivemos está mesmo inscrito neste tempo de agora. Cada passo sentenciado hoje foi-me dado ontem, não sou resultado de nenhum outro tempo se não do passado. O corpo tem memória, dizem. Há dois dias que voltei a correr e mesmo que eu me canse muito e queira desistir são os meus pés que me levam mais a frente, são eles que me lembram do caminho e ritmo, cativa, só obedeço. Não me perco, mesmo que quisesse, o corpo comanda: direita, corra mais um pouco, agora é descida, segure o ritmo, desça a calçada, espere o sinal, siga em frente, mais forte, inspire, solte o ar. Não sou eu quem falo é a outra que aprendeu o caminho e, experiente, é quem me guia agora. Mesmo que escolhesse ignorá-la sua voz não calaria, ela diria: levante-se e eu continuaria deitada, mas só a escolha em não obedecê-la é que seria minha. O passado não passou. É ele quem insiste com os meus pés.

  A vida é esse constante exercício de lembrar e tentar esquecer. Na memória frequentemente requisitada buscamos no passado o que não somos capazes de compreender enquanto acontece: - Mas o que eu disse mesmo naquele dia? Que palavras usei? Como começamos? Qual o lugar em que nos perdemos? Não sei, acabou. Não interessa mais.
  E nesses dois passos para trás e um para frente, vamos seguindo submissos a um tempo que só é passível de entendimento quando não podemos mais voltar atrás. Mas é a partir dele que os nossos passos aprendem os caminhos. Não mudamos o que passou, mas  mudamos, a partir do que se passou, se não rejeitarmos a  voz que vem de um outro tempo.

  Chego em casa, alongo os músculos, quase  automaticamente, lembrança dos tempos de balé, pego a toalha no varal e cheiro longamente suas tramas, sempre cheirei as roupas, toalhas, fronhas e lençóis, meu olfato é mais antigo do que eu,  antes do banho me olho no espelho e tenho mais de trinta anos, sorrio com a constatação e volto a ter três. Do passado não desgrudamos nunca, no para-choques do caminhão a vida de todos nós está impressa: o passado não passou. Passamos nós, mas a voz de outros tempos não nos abandona. A noite está estrelada, antes de fechar as cortinas, olho para a luz que já não existe, mas que brilha sobre as minhas janelas.

  A memória é a única tragédia que pode nos salvar de nós mesmos. Na fotografia da estante, lado a lado, uma menina de vestido azul, com o dedo na boca e uma jovem de cabelo chanel, vestida de beca são as únicas que conhecem os caminhos tortuosos ou venturosos que os meus pés já pisaram, no sorriso delas, compreendo: vai ficar tudo bem. Sobre um tempo que não sei, aprendo cada dia um pouco mais e mesmo quando acho que desconheço a voz de outro tempo sussurra para me ensinar, então deixo que ela fale.    



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