segunda-feira, 15 de junho de 2015

Tempo de revoada

  Há o tempo de chegar, de aos poucos conhecer o lugar, ir assentando as penas devagar, ganhar espaços, alongar o que no corpo está retesado, relaxar os músculos tensos pelo receio e só, então, seguir em um mergulho mais fundo, se apropriar. Até que, finalmente, o lugar estranho, antes inóspito passa a fazer parte de nós, sem data conhecida, sem marca específica mas, lentamente acomodado; o lugar, num dia qualquer no calendário, passa a ser nosso. Mais, o lugar e nós confundidos, entrelaçados: a porta de entrada é também um coração aberto. 

  Os copos baratos e as mãos vazias, as rachaduras da parede que ninguém mais vê ou as feridas que nunca cicatrizaram, a tinta escondida debaixo de três ou quatro demãos de outras cores de tintas e os sentimentos guardados pelas inacessíveis chaves, o armário embutido com a porta defeituosa desde que foi instalado e ninguém consertou ou os adiamentos constantes pelas prioridades eleitas, a campainha aguda que não assusta mais e a coragem adquirida, os vizinhos ora hospitaleiros, ora inimigos mortais e a impermanência dos sentimentos, as panelas sem tampa ou os casos insolúveis, as visitas sem anúncio e as surpresas diárias, o chão encerado com capricho ou a alma requisitada para o gesto, tudo aquilo que um dia nos rodeou passa a ser também aquilo que somos. 

  Nós e o lugar em um inesperado dueto: dois para cá, dois para lá. Depois de aceitar a contradança não há possibilidade de fuga mais. E mesmo nos dias em que a dança não pareça tão fluida e que os corpos se lancem distantes, sem a sincronia necessária para a dupla de dançarinos, o par insiste em seguir com a coreografia. Não  abandonam música, palco, nem deixam a plateia de olhos vazios. O compromisso é maior que o cansaço, o cumprimento da promessa é nó que une gente e espaço; vida e lugar.

  Na falta de comida, clima favorável ou, mesmo, quando chega a hora  de preparar a prole para a continuação da existência, os bandos sentem o chamado da natureza, é esse o instante de abandonar a conquista mais dura e também terna, abrir mão de cada canto conhecido e trazido na alma e deixar o par seguir a dança sozinho. Chega um tempo em que a revoada é essencial para a manutenção da vida, da nossa, dos nossos descendentes e a desse desconhecido, que embora não saibamos determinar quem ou o que é, a ele também estamos submetidos por um compromisso.

  Se aves maduras quase nunca têm dificuldade em se encontrar com o lugar antigo, porque  sabem muito bem para onde voltar, reconhecem os caminhos da viagem, têm asas que compreendem o tempo da partida e fazem do hábito o chamado para a volta. As mais jovens costumam se perder, pela falta de treino, pela pressa do acerto, pelo lamento da despedida; a imaturidade não está preparada para o desapego ou para último voo algum, a imaturidade só conhece este agora. Embora errante, sem direção ou saudoso do que deixou, um pássaro paciente, amante do seu lugar, ainda que jovem, jamais errará o seu destino. Porque reconhece que o lugar onde um dia se instalou, agora já está instalado em si.

  Eu disse adeus a ela, disse que sabia bem da sua capacidade de voar e repeti para mim que eu também posso  me despedir, porque há tempo de chegadas e tempo de adeuses. Que ela saiba sempre ganhar novos espaços, mesmo que este que assiste a sua despedida jamais se desprenda do que ela se tornou a partir dele. Somos pássaros e o compromisso da revoada nos convoca ao nosso destino: manter a vida a custos dolorosos, por vezes, mas essencial e sublime. Olho para ela e vejo seus olhos de águia corajosos, eles também me convidam ao destemor. Partimos, ambas, para outros lugares e instantes, assim a vida nunca há de cessar, ao menos, dentro de nós. É na revoada que conhecemos nossa capacidade de sermos gratos às asas as quais deveremos para sempre honrar.



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