segunda-feira, 27 de julho de 2015

O alcance favorito das coisas

  Olhou longo para a janela recém lavada, viu uma frase desbotada no muro da frente e a dúvida foi o que ocupou a contemplação: - E já estava lá quando me mudei? - E já existia assim, antes de lavar a janela? 
  Escrita desgastada no concreto e, assim,  tão recente aos olhos de alguém que já se achava acostumada. Instalada em coisas muito iguais, cercada pelo conhecido, absoluto, pelos prédios que não mudam de cor, só renovam as pinceladas de uma mesma tinta. 
- Mas e a frase do muro? Como não percebeu a frase?

 Quanto mais antigo, menos conhecido. Esta é, sem dúvida, uma preciosa  vantagem do tempo: renovar perspectivas. As relações de longa duração moram entre um constante limiar e desfecho;  interminável ciclo de começos e fins. Isto não significa estar sujeito a uma jornada de turbulentas suspeitas ou desconfianças sucessivas, mas de descobertas constantes. Para os encontros é preciso estar disposto às surpresas, conhecer uma perspectiva nova, da mesma paisagem, diariamente; descobrir que o conhecido é, na verdade, um estranho. 

  Amigos, amores, as mais remotas ou íntimas relações guardam segredos que só descobrimos com o tempo. Não há testes psicológicos prévios, questionários elaborados ou confissões planejadas que nos levem a um derradeiro conhecer, só sabemos do outro um pouco de cada vez, quando já não esperamos, quando parecemos estar sobre terreno sólido. Mas, aí então, tudo se desestrutura, em uma descoberta sutil de algo que não sabíamos ser parte de quem carregava as nossas certezas.

  E quando num dia, sem aviso ou ensaio, a tatuagem desconhecida é revelada, a opinião controversa é desnudada, o apelido que o antigo namorado costumava chamar é lembrado, a história de família que nunca havia sido partilhada, o trauma da infância ou o sonho antigo realizado são trazidos à superfície e tudo mais daquilo que é capaz de nos aproximar ou apartar  do nosso estranho íntimo, assistimos o nascimento de um outro e pensamos que talvez estivéssemos enganados. Ou, outras tantas vezes, acreditamos na mudança, mas conhecer algo ou alguém é muito mais andar ao lado da dúvida, do que caminhar sobre a certeza.  Mudaram as possibilidades, as referências, o alvo do olhar e, por isso, a sensação de estarmos frente a outra coisa ou pessoa. 

  Como nessas curiosas histórias de um segundo casamento de um mesmo casal, depois de anos separados, que se escolhem novamente e fazem um outro começo ou amigos que se reencontram após um longo período de distância voluntária e mesmo com todas as memórias que deixaram de construir juntos, partem dos antigos recortes e renovam os  laços. É claro que o tempo opera uma série de transformações: maturidade depois das perdas, histórias abandonadas ou escolhidas, superação, outros relacionamentos desfeitos ou construídos, mas essencialmente os reencontros trazem a descoberta da novidade naquilo que já acostumamos e isto é, de alguma forma, um outro nascimento. Então, os pares não mudam completamente, só se olham de outro jeito, descobrem o que estava há muito a sua frente, mas sob uma luz menos intensa.

  Desconhecemos uma coisa nova por dia dos nossos relacionamentos e, num mesmo instante, descobrimos algo também e, mais,  que nada é certo, absolutamente claro e que as pessoas não estão nunca prontas, mas são outras, muitas outras e que se dermos tempo, disponibilidade e olhos livres, elas nascerão a todo o tempo. Tantas vezes, o que parece desconhecimento é só uma estranheza inicial, aguardando a compreensão para prosseguir numa  jornada maior. É o desconhecimento que alimenta os afetos, a descoberta é o lugar preferido dos amantes; nenhuma certeza existe se os olhares forem longos e incansáveis. O alcance favorito dos olhos devotados é ilimitado, é naquilo que ainda está porvir.







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