quinta-feira, 23 de julho de 2015

Para vencer o inverno, sono tranquilo

  Acordo hoje depois de seis horas de sono, mas é como se tivesse dormido seis dias ou seis semanas. Não, dormi, ao que me parece, por seis redentores meses. Acordo depois de um semestre inteiro hibernado e ninguém percebe minha ausência: nenhuma mensagem na caixa postal, nem carta no correio, sem notificação judicial ou aviso, nem conta recebo. Passo seis meses em sono profundo e nada no meu mundo me solicita. Nem a data do calendário se solidariza com o meu exílio voluntário nas terras de Morfeu, pois só conta um dia na minha viagem que durou,  numa  contagem minha, mais de cem.

  Acordei descansada, com menos urgências, mais leve; acho que fiz jus ao seis meses de entrega completa ao repouso. E enquanto dormia, quitei dívidas, livrei-me de dúvidas antigas, fiz as pazes com a tranquilidade da qual, vez ou outra, me afasto e tive toda a sorte de sonhos. Reencontrei com a juventude de meus pais, revi a infância dos meus irmãos, beijei as mãos do avô e da avó, visitei a antiga venda e ouvi as tábuas do chão rangendo enquanto eu entrava, fiquei dividida entre o suspiro rosa e o doce de amendoim e acabei escolhendo o segundo. Sonhei com a minha franja recém cortada grudada na testa pelo suor, com o anel de pedra lilás que eu nunca soube precisar quando perdi. Com a bandeira hasteada no pátio da escola e a vontade de ir ao banheiro adiada pela solenidade, com a prova marcada para a qual eu nunca estudei. Sonhei com o meu desleixo com o futuro, com o nó na garganta, enquanto eu recitava poesias em público, com o trecho da música que eu mais gostava, "preso às canções, entregue as paixões (...)". Sonhei com o canário amarelo da nossa casa e as cascas do alpiste no chão da varanda, com a camisola de algodão e babados brancos, com o livro de uma italiana e a sua rua, com o menino loiro de olhos grandes que eu esperava que um dia me amasse muito. 

  Vi uma vida passar, como uma narrativa no ecrã,  sem angústia nenhuma, sem nenhum ressentimento ou traumas maiores, sem ansiedade para o fim, sem necessidade de apego a partes dela e me perdoei - perdões sucessivos -  por tudo aquilo que não fiz. Se não por falta de coragem, por incompreensão da necessidade de estar disposta para a vida, acima de qualquer pretexto. Assisti, como se outro vivesse a minha história e não eu; e a partir de uma perspectiva diversa fui mais flexível, menos severa. Deixei que passassem por mim, sem nenhum grito, pedido de pausa, desejo de avançar ou apagar. Só assisti. Escutei todas as vozes, as músicas de cada cena, os sons que me pareceram familiares, senti os gostos, revivi sabores e deixei que os cheiros invadissem meu quarto, minha cama, meu sono. E acordei sem cansaços, sem medidas, sem horas passadas ou compromissos perdidos. E só despertei, depois de reconciliada com a memória.

  Para avançar os dias frios de julho, para ultrapassar as dificuldades de um agosto que se aproxima, para vencer as tormentas que nos alcançam no  inverno, o melhor que se tem é visitar os abismos do sono, reencontrar-se em lugares antigos, reviver gostos, gestos e os sons arraigados - frequentemente emudecidos - e perdoar-se sempre.  Dormir é viver em tempo inverso,  encontrar-se para dentro; acordar é vontade de futuro e desejo de encontros fora de si. O sonho do qual gosto mais é aquele que ainda não tive; por ele é que desperto depois de cada sono comprido. E numa noite de sono tranquilo, o inverno da alma se aqueceu.




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