terça-feira, 21 de julho de 2015

No que não se espera

  Ele se afasta da caixa de papelão, mas não muito, fica no lugar onde acha que um arremesso será capaz de alcançá-la. Não tem mais de seis anos e tem uma concentração extraordinária, não se distrai com os sucessivos conselhos de alguém que insiste que ele chegue mais a frente, mas contraria, se afasta mais, o que deixa o seu interlocutor irritado, bufando e derrotado. Com uma bola barata de supermercado, muito maior que as mãos dele, ele aperta os olhos, e por isso franze sutilmente o cenho delicado, dobra os joelhos, suspira e arremessa a bola como um profissional. Inicia suas tentativas cerca de dez ou doze passos da caixa. A primeira bola investida fica pelo caminho, não chega nem perto, um motivo a mais para que seu conselheiro volte a insistir que ele se aproxime. O menino abre mão somente de dois passos e se aproxima, joga a bola com  mais força, mas ela voa torta e passa novamente longe da sua cesta inventada. A cada erro, e são muitos pela tarde, ele insiste mais e parece mais concentrado.  

  Insiste  nos trejeitos imitados de algum atleta que assistiu na TV, insiste nas estratégias que ele mesmo criou para colocar em prática o seu plano de acertar a bola na caixa,  insiste em ignorar o homem que vez ou outra se levanta e tenta tirar dele a bola, mas ele grita, ameaça uma cena e o homem se enrubesce, com as outras crianças e seus pais que testemunham a obstinação do pequeno atleta, e volta a se sentar. Depois uma dezena de tentativas frustradas, de uma dúzia de torcedores conquistados, o obstinado abandona a bola,  ignora a cesta e corre para o balanço. Não teve sequer um acerto, mas não se importou mais, foi buscar alegria noutra coisa, sem o peso da necessidade do acerto. Planejamos muito, passamos muito tempo articulando caminhos que ou não chegam a se concretizar ou são muito diferentes quando acontecem. Insistimos demais em trajetórias que simplesmente não nos pertencem, se não para sempre, ao menos, por agora. Traçamos, com uma racionalidade muito ingênua e crédula em si, trajetos para objetos e histórias que são ampliadas demais para caberem num só plano. Olhamos demasiado para o outro lado de uma margem, quando tantas vezes é nesta mesma que está o que buscamos. Perdemos o tempo dos encontros que temos, subestimamos o valor das relações que estabelecemos - curtas, longas, passageiras ou contínuas - em troca de uma ideia de caminho, de unidade, de alegria única.  O desencontro entre aquilo que planejamos e aquilo que realmente nos encontra é onde a vida pode e deve acontecer.  

  Porque a vida, de fato, acontece naquilo que não é planejado. Os planos, as listas feitas a cada final de ano, os sonhos desenhados no papel e as expectativas  nutridas a colheradas nos sustentam, ajudam a nos mantermos mais dispostos a cada manhã, mas é o inesperado que nos leva a algum lugar. Não até aquele que desejamos no início, mas até o lugar que a nossa infinidade de passos involuntários foi capaz de alcançar. O que tantas vezes parece fracasso, desobediência do destino aos nossos planos é mais uma possibilidade nova de conhecermos a felicidade fora da lista, é mais um regalo do universo e um ensinamento poderoso de humildade, generosidade e aceitação plena das surpresas que não caberiam nos nossos planos da partida.

  O menino no balanço não tem o compromisso do acerto, do arremesso final, tampouco de um fruto colhido pela insistência. No balanço, ele deixa os cachinhos castanhos ao vento, encontra uma companhia tão sorridente quanto ele no balanço ao lado e na brincadeira nova reencontra a alegria da antiga. Ele há de se cansar do balanço e partir para outra felicidade daqui a alguns minutos, vai se encantar com um cachorro, uma folha caída no chão ou com qualquer outro tesouro disponível na praça. O certo é que se da caixa de papelão ele queria distância, da felicidade ele se mantém muito próximo. 

  O homem que o acompanha, esquece um pouco da obrigação de observá-lo, segura a bola, aponta para a caixa e acerta a cesta; ele, ainda, estica os braços e comemora sozinho e com muita discrição o que planejou, pensando ser para o garoto, mas que sempre pertenceu a si. No que não se espera é onde certamente nos encontramos com quem somos e nem sabemos. Dois homens e suas escolhas na praça, numa tarde de segunda, só reforçam que nem tempo, planos, maturidade ou decisão são capazes de nos levar até a outra margem, se o que nos pertence vive deste mesmo lado ou noutro rio distante. Tantas vezes é melhor soltar o corpo e deixarmos que a mão da provisoriedade nos oriente ou, pelo menos, nos embale. Feito isto, é aproveitar a viagem e nos mantermos atentos aos encontros.



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