segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Ainda é cedo, hoje pode ficar mais na cama

  Há dias, a maioria deles que nem suspeitamos no seu início, que se instalarão para sempre num cesto bagunçado de memórias. Pedaços pequenos de linha, novelos pela metade, outros pouco gastos, quase inteiros, que coloridos, se misturam num mosaico de lãs diversas e que, em alguma medida, são complementares. Em um emaranhado de diferentes cores, tamanhos e padrões, cada linha nos levará a uma narrativa muito particular e que misturadas contarão uma história maior; uma trajetória inteira dentro de um cesto de lã.

  O despertador tocará, tomará um banho morno como todos os outros da semana, escovará os dentes, tomará um café preto e duas torradas, lamentará  a neblina do lado de fora, alimentará um cão, escreverá um bilhete e não suspeitará que ele jamais será lido pelo destinatário. O dia começado mecanicamente, anos depois será repassado nos seus detalhes mais ordinários: que roupa usava mesmo? Foram duas ou três torradas? Terá sido com geleia, manteiga ou requeijão? Como exatamente escrevi no bilhete que depois rasguei? A retomada inútil seguirá por dias e no cesto de restos de lã, a torrada é um fio marrom.

  E se na tentativa de lembrança de cada detalhe, entendesse a explicação para o desfecho? E se ao lembrar do gosto do café, pudesse por uma catapulta mágica, ser levada a um tempo ultrapassado, perdido em detalhes?

  Porque acordou e não sabia que era o dia, aquele aparentemente comum, que colaria  tão fortemente a sua memória por décadas afora. Porque não sabia que a partir de um só acontecimento, naquele dia,  tudo de ordinário na manhã prosaica passou a ser fortemente resgatado. O  café, o frio no rosto, os sorrisos e as caras fechadas pelas quais passou, o ascensorista do elevador e a sua gravata insistentemente retorcida, os gerânios na mesa do escritório ao lado, a voz aguda da secretária nova em seu bom dia festivo, a bolsa colocada sobre a mesa, o computador ligado, o toque do telefone e a notícia. E, então, as palavras difíceis, de um interlocutor desconhecido, que jamais se escondem, se apagam ou desbotam minimamente, mas que a cada distância aumentada de tempo e espaço, mais fortes e encorpadas  se tornam. Como pode a voz de um alguém a quem nunca conhecemos, definirem os rumos de uma história inteira? A voz no pedaço de linha vermelha: grave, contundente, para sempre destacada no cesto.

  Há dias, outros, talvez em menor quantidade, que já acordamos determinados a guardarmos restos dele no cesto de linhas. Dias que uma conquista será comemorada, um afeto oficializado, um acordo efetivado. Linhas voluntariamente  selecionadas e que por isso, acordar já é especial. Nada será mecânico, nada passará imperceptível aos olhos que sabem que cada detalhe da manhã, da tarde e noite adentro será rememorada tantos anos depois. Por isso o banho é outro, o gosto do pão é sentido para ser lembrado, a ração do cão medida no pote, também alimenta o dono. Um tempo presente, pensado para ser revisto no futuro: três tempos distintos, que coexistem, ao menos num dia.

  O cesto bagunçado de memórias tem disto: pedaços de linhas imprevisíveis e restos de lã selecionadas. Ambas contam a história de uma existência inteira. Novelos maiores que terminam abruptamente, pedaços mínimos de linha que demarcam mudanças determinantes, linhas que trazem uma história suave de inícios, meios e finais. Todas contam os dias que serão para sempre revisitados.

  E na segunda gelada de feriado, ao desligarmos o despertador, uma voz de cor azul de um passado remoto e lugar indeterminado, virá nos acolher: "Ainda é cedo, hoje pode ficar mais na cama". E não importa se as grandes mudanças dos dias memoráveis, se os acontecimentos destacados numa agenda ou as surpresas definitivas de um dia começado ordinariamente estarão demarcadas nos fios,  serão os detalhes de cada dia que saltarão na confusão das lembranças enoveladas.  



Nenhum comentário: