sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Fadada às asas

  Vê-se que pensa em algo, enquanto olha para fora. Talvez não saia porque chove, talvez pense que não há o que fazer agora na rua molhada ou até, para sempre, mesmo quando a rua estiver já seca não virá. Ela é uma senhora com alguma dificuldade de locomoção e divide a casa com uma irmã. De início, confundia as duas, porque estavam sempre juntas, moravam na mesma casa e se pareciam bastante. Mas, hoje, reconheço-as, percebo as diferenças sutis que demarcam suas identidades e pela mulher que vive a espreita na janela sinto uma afinidade profunda e singular; mesmo que a cada dia mais, seu contato com o mundo fique restrito às janelas de grades cinzas.

  Os olhos pretos brilhantes sorriem mais que os lábios, que parecem se alegrar com atraso, mas nada de sorrisos rasgados e muito aparentes; alegria discreta e muito juvenil, ainda, felicidade de descoberta. Encontrava-a, ela sempre junto da irmã, muitas vezes pela rua, ambas ativas, ela sempre na frente, cuidadosa com a mulher que parecia mais frágil. Depois, passei a ver a sua irmã sozinha nas idas à padaria, ao supermercado ou à loteria. Enquanto ela permanecia no jardim da casa ou na calçada, tomando sol, com uma bengala caída ao lado. Mas nos últimos encontros, vejo-a de espectadora da vida tediosa desta rua. Os olhos ainda brilham, mas a descoberta parece não ser mais uma missão, envelheceu dez anos, minha vizinha, nas últimas semanas.

  Penso se terá perdido a mobilidade, antes do encanto pelas novidades possíveis ou se foi o contrário, que aconteceu com ela: primeiro os olhos se aquietaram com o mundo e só depois,  as pernas é que cismaram com o sossego. Ambos me parecem demasiado melancólicos, mas o segundo, me desinquieta bem mais.  Porque não acho que é escolha nossa a paz ou o desassossego, penso que nascemos mais para um ou para outro. No caso dela, a placidez é forçada, a mansidão é condição fabricada, nos olhos pretos vejo mais luta em permanecer do que entrega em continuar a ser o que sempre foi.

  Porque liberdade, acho, não é opção que caiba sim ou não, é condição que segue desgovernada numa  ladeira inclinada. Quando nos damos conta do desvario, saltamos numa corrida sem planejamento, sem cálculo antecipado, em busca de uma possibilidade de salvamento, na luta desesperada de retomarmos o seu controle, que na verdade, nunca esteve sob tutela nossa. Mas corremos, corremos muito, como um menino atrás da bola que já é perdida na partida, sem esperança, sem possibilidade alguma de recuperação, numa peleja redentora em si; sem, ao menos, um toque de despedida na bola que segue infinita pela ladeira.

  Então, mesmo que as janelas se mantenham abertas, sucessivas vezes há a recusa em  olhar para fora. Ou porque parece confortável estar dentro ou porque acende a desconfiança de que talvez não seja nosso o que está depois do batente das vidraças. Então, talvez fosse melhor  fechar os olhos e se confortar com o que está a mão ou não querer o que não sabe se pode, deve ou ainda é possível de conquista. Isto é a dor de destinos livres que se fazem cativos; por escolha.

  Mas, há coisas, como a fatalidade de ser livre, que nos escapam ao impedimento ou direção. Não porque perdemos o seu domínio, de repente, mas porque nunca o tivemos mesmo seguro nas mãos. A alma desses olhos pretos, cerceados pelas grades cinzas, é livre, é curiosa, desassossegada, barulhenta e viva; eu sei. E parece lutar muito para obedecer às pernas, que não acompanham a mobilidade do seu espírito desgarrado. 

  Talvez ela não saia, porque tem chovido muito nestes últimos dias ou talvez saia mais do que eu possa ver e siga respeitando as viagens que a sua alma engendra. Um pássaro fora da gaiola só não voa se não quiser. E isto também faz parte da sua condição, escolher o voo. Porque as asas sempre estarão lá. Este é o fardo de um pássaro livre: saber que tem  asas. 



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