sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A cor vermelha dos pés

  Às vezes você caminha muito rápido, sem nem saber para onde. Ainda assim, não diminui o passo, porque acha que independe saber o destino, na esperança cega de que seja ele a lhe reconhecer. Como se houvesse um chamado, ouvisse uma voz e, esquizofrênica, você segue, obedece, não por submissão, mas por parecer a única alternativa; como se outras vozes nunca mais a buscassem, por isso se agarra a esta. Anda rápido, tanto, que nem vê a paisagem, esquece as esquinas, supera os obstáculos, mas nem ao menos comemora, afastando pequenos prazeres, evitando convivências muito aprofundadas, porque despedir-se custa tanto. Dorme e nem sonha, cansada, só planeja a rota para o dia seguinte, como se um lugar a esperasse. E esse sim valesse cada ferida de um pé adormecido pela obstinação. Não há chuva forte o bastante, que desabe a resolução de não desistir, não há sol abrasador, que queime mais que o desespero de um destino que a reconheça, nem escassez de água ou comida, que alimente a sua vulnerabilidade, tudo o que não quer é estar sujeita ao que não seja a voz.

   Só o vento, quando é muito forte, que a faz ver a estrada de outro jeito, faz pensar se o caminho deve ser seguido assim mesmo, tão firme, tão na marra, ser esse domador que nunca se conforma em ser vencido pelo cavalo cheio de liberdade. Porque o vento é o único a abafar a voz de fora e a guardar algum silêncio, o vento é o único que engana os caminhos, faz o desvio da rota, obriga-nos a buscar um refúgio, a  fechar as janelas e espremer os olhos, como precaução para mantermos as pupilas livres dos arranhões; por isso é que na ventania nos acostumamos a ver o mundo por frestas, nunca inteiro. E o caminho, assim, parece outro, os detalhes se ampliam, o mundo em volta precisa ser visto e colado, feito um quebra-cabeças: uma peça de cada vez, até entendermos ele inteiro de novo. Só uma tempestade de vento e areia relativiza a decisão.

  Na pausa forçada, a voz é, finalmente, questionada: - E se não existir um destino? E se ele existir e não me reconhecer? Se na precisão da corrida eu o perdi de vista, se passei por ele e não ouvi o seu chamado? Se a voz que eu persigo não for mesmo a certa? Será que eu a invento? Por que é que já nem sinto os meus pés?

  E, agora, parada no silêncio, no abrigo de janelas fechadas, salva, brevemente, da voz que obedece, olha para os pés. Tira o sapato e só então é capaz de perceber o sofrimento que obriga à própria existência. As feridas  ignoradas que ainda sangram, as cicatrizadas, das quais nem se lembrava mais. Os pés que resignados seguem a dona, os pés que não pedem descanso, que não se negam à caminhada forçada, que não a abandonam na jornada desesperada, os pés que nunca a deixam desamparada, que calados seguem a obstinação que desconhecem. Vê-los frágeis devolvem-na a dimensão da luta na qual se instalou, ver as bolhas rosadas, a carne viva nos calcanhares devolve-lhe a noção de vulnerabilidade e da loucura que talvez seja essa caminhada obstinada demais.

  Tirar os sapatos foi seu renascimento, doeu e como doeu estar descalça e sensível, de novo, no meio do nada! Mas é que, às vezes, o parto não acontece natural, ele precisa ser feito a fórceps, porque ser sugada por um ferro gelado é sorte maior do que morrer no desconforto acostumado. Agora já não caminhará mais com tanta pressa, não perseguirá uma voz ou ideia de destino que a reconheça. Vai cuidar dos pés imersos em água salgada e vai, aos poucos, abrir as janelas, depois da tempestade de vento. E será grata, quem sabe,  às feridas, aos sapatos abandonados e ao vento que lhe devolveu a paz dos passos sem pressa. A cor vermelha dos pés trouxe-a de volta a um caminho de paz e entrega relaxada, mesmo sem destino.

  A gente nunca sabe aonde uma escolha nos levará ou onde nos deixará. Nem se ela nos prende a ela ou nós é que nos aprisionamos ao seu fardo.




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