terça-feira, 13 de outubro de 2015

A dona da chama

  Eu podia não ter visto, podia nunca ter notado ou, ainda que soubesse, ignorado, mas os acontecimentos, os detalhes, os segundos planos, os lugares que os nossos olhos passeiam não obedecem à vontade, estão muito mais submetidos a uma necessidade nossa, mesmo quando não sabemos delas. Eu a vi e tenho acompanhado a sua missão, vivido um pouco das suas noites insones e partilhado, ainda que ninguém saiba, do seu ritual particular.
 
  Começou há  quatro noites passadas, quando uma luz mínima entrou pela janela do meu quarto, era tão pequena, tão pouco perceptível, que eu nem, ao menos, tive a curiosidade de procurar a sua origem, não fechei a pequena fresta da cortina, nem esperei que se apagasse; só dormi. Na noite seguinte, a luz de novo entrava no quarto e pensei que talvez fosse a lâmpada da rua acesa ou de algum vizinho, alguns minutos deitada, somente supondo. A luz não me incomodava, não atrapalhava meu sono, nem me revelava o que eu desejava esconder, quando apagava a luz do meu quarto, mas me chamava, acho. Como se ao não procurá-la eu perdesse algo muito valioso. E por isso, levantei, abri a cortina e busquei o lugar de onde o  fio de luz partia.

  Era tão delicada, tão pouco evidente que eu demorei algum tempo para entender a morada da luz que me solicitava. Do outro lado da rua, da casa que eu só conheço o cachorro, a piscina cercada por um muro de azulejos transparentes e o repertório musical das festas no final de semana, pela primeira vez, eu vi um dos seus moradores. E a luz que entrava no meu quarto foi o que me despertou para a existência da mulher da minha rua. Vi o seu perfil alaranjado pela chama de uma vela, é morena de cabelos na altura dos ombros,  parecia vestir uma camiseta de dormir e estava em frente a luz que me buscou na cama. Silenciosa, eu acho - porque não vi os seus lábios mexerem - ela cuidava da chama de uma vela. No escuro do meu quarto eu a observei por algum tempo, pensei sobre os motivos da manutenção do fogo, das intenções que fazia e até da fé que a mantinha em frente a vela. A luz que me chamou, a desconhecida que eu acabava de tomar conhecimento da sua existência, o fogo que me surpreendia e, finalmente, a  cena que me enternecia adiaram mais o meu  o sono e demorei muito a abandonar meu posto de espiã. 

  Nas duas noites seguintes a pequena chama veio me visitar, ela está aqui dentro agora, e tenho visto o mesmo perfil, que às vezes se põe de frente, mas nunca me vê e que persistente olha para a chama pequena, como se dela uma vida inteira dependesse. Não sei explicar o porquê, mas a vela acesa nas últimas noites, na casa de uma desconhecida, tem me dado tanto, tem me confortado mais do que todas as luzes acesas da cidade, se elas de repente, se iluminassem para mim.

  Não sei por quem ou o porquê, a mulher cuida da chama, se dedica tantas horas a mantê-la acesa e colore tão melancolicamente o seu perfil, durante as últimas noites. Seu cão me diria se pudesse. Às vezes, penso que talvez seja  por um familiar doente ou por ela mesma, acometida por alguma enfermidade, talvez uma dúvida ou dívida, quem sabe? Depois, menos grave, penso em alguma prova difícil que algum dos filhos fará. Minha mãe acendia velas quando fazíamos provas na escola. Quando minha irmã fazia faculdade em outra cidade, ligava para ela para pedir que acendesse velas em quase todos os finais de semestre. Tantas vezes a vela da minha mãe me deu coragem para, ao menos, comparecer à escola, sabendo que o ano era perdido, que eu não conhecia absolutamente nada da matéria e nem mesmo tinha estudado. Não era fé na religião, nas intenções ou qualquer coisa de místico, a vela da minha mãe acesa em cima da geladeira azul era a sua crença em mim, não era o fogo, era o amor que me encorajava a tentar, mesmo que o fracasso fosse inevitável.

  Agora, nas últimas noites, a chama de uma vela tão longe, de uma desconhecida, cumpre o mesmo papel da chama da vela que brilhou tanto na minha casa: despertar uma fé, confortar um medo, iluminar o caminho escuro e tortuoso que é o da tentativa sem sucesso, das falhas já sabidas desde a partida; mas a estrada precisa ser cumprida, o fogo diz. A luz de uma vela que não se apaga, os olhos vidrados na chama e o perfil alaranjado de uma mulher insone me ensinam que a confiança e a fé em alguém, é o que de mais bonito o amor concede. Que a vela dela seja tão duradoura quanto a da minha infância. Que a oração dela seja ouvida aqui, mais do que em qualquer outro lugar e que as suas intenções de pedido, graça ou agradecimento sejam atendidas na mesma medida da sua dedicação ritualizada. Eu hoje, não dormirei antes do sol sair, ficarei em vigília com ela, sem ao menos saber ao que pedir ou agradecer; meus olhos serão do fogo que a mulher da minha rua sustenta tão fervorosamente. 

  Eu poderia jamais saber da mulher do outro lado da rua, poderia não ter permitido que a fina chama da sua vela perturbasse minhas noites, poderia não lembrar da minha mãe e da geladeira azul da minha infância, poderia não me deixar atravessar por uma cena na primeira vez que a vi, nem voltar outras noites a uma casa sem convite dos donos, mas como já disse, não é escolha, é necessidade tantas vezes obscura. Uma chama sutil cruzou meu quarto e entrou na minha alma, que buscava luz na madrugada; agora eu não ando mais no escuro. Não nas últimas quatro noites. 



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