terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A fumaça do cigarro dele

   É a terceira vez que a mesma música toca e nem saímos do quarteirão. São seis horas e choveu muito. "Uma batida na rotatória", a voz do cobrador sufoca o melhor verso do cantor nos fones. A casa já está bem perto, os pés já estão molhados, mas preferi ficar mais tempo, ouvir a mesma música mais duas ou três vezes e aí sim, quem sabe, pedir ao motorista que abra a porta, descer e respirar o ar novo lá de fora. Em modo repeat escuto o verso preferido de novo, de olhos fechados. Quando abro, vejo uma bolha transparente grudada ao vidro da minha janela. Antes de descer, resolvo buscar as mãozinhas ou lábios  que tenham dado a bolha para mim. Procuro-o nas janelas dos apartamentos da avenida, mas com a chuva forte que caiu agora há pouco, todas se mantêm fechadas.

  Alguns minutos depois, descubro uma dezena de bolhas de sabão, nascendo nos fundos do prédio cinza. Sem intervalos, elas são produzidas em alta escala, quase compulsivamente e chegam depois de uma tempestade cheia de força, invadindo o cinza das paredes e do céu de início de dezembro.  Em um canto de uma das avenidas mais movimentas da cidade, bolhas de sabão modificam o cenário pretenso urbano.

  A nuvem de bolhas esconde, por algum tempo, o remetente. A névoa de círculos transparentes mantém ocultado o melhor do engarrafamento. Ainda forço a visão, através do vidro embaçado e tento ver quem me deixa submetida à paciência e contemplação, em uma segunda chuvosa com trânsito arrastado. Cansado de passar o dia preso no apartamento, sem poder ir à rua ou à casa de amigos, talvez a mãe tenha sugerido as bolhas e um filho, agora, descobrisse a simplicidade da morte ao tédio.

  Procurei a criança, quis ver seu rosto alegre concentrado no trabalho de distrair o aborrecido tempo e de ampliar os espaços do apartamento. Procurei um menino do centro da cidade, que brincasse de uma mesma infância que é, ao mesmo tempo, muito antiga e inexistente ainda. Mas à medida que as bolhas começavam a ser mais espaçadas, um rosto adulto aparecia por trás da cortina provisória. Quem soprava o aro coberto de água com sabão era um homem, sem mãe por perto. É provável que a ideia da distração tenha sido sua e o preparo da matéria prima também tenha sido assumido por ele.

  Um homem de quarenta anos, nos fundos do apartamento do qual ele mesmo paga água, luz, sabão, aluguel e condomínio se responsabiliza por uma brincadeira que se libertou da infância e solta no ar o desejo de leveza que é dele. Eu escolhi a música, ele as bolhas. Na prisão dos dias da semana preenchidos de desimportância, no cárcere incólume dos automóveis que nos acorrentam muito mais do que nos levam a algum lugar, na travessia limitada do asfalto e na chuva que nos deixa ilhados do previsível, há de se encontrar alguma liberdade que nos salve; que nos leve a um destino melhor do que o do final da avenida.

  Um homem adulto que soprava bolhas de sabão me detém um pouco mais no trânsito, abafada pelas janelas que me isolam dos pingos que voltam a cair lá fora. Não era por ele. Não era pelo cigarro que ele não fumava. Era a sua escolha, a sua pausa, o abandono da urgência. Eram bolhas de sabão, cuja paternidade era assumida sem constrangimentos. Ele traga mais um pouco de ar, regado à detergente, puxa todo ele até o pulmão se encher e assiste a angústia colorida se desprender dos seus lábios e estourar no gramado vizinho ou se prender ao vidro da janela de uma admiradora.

  Amanhã ou depois, passeio em frente ao prédio, irei a pé, talvez busque o homem das bolhas de sabão na sua varanda dos fundos ou aceite a transitoriedade da poesia nas bolhas e o esqueça. Enquanto o homem liberta sua inquietude  do apartamento do Centro a minha música embala cada incômodo do dia. Vamos como podemos, às vezes, o tempo custa a passar e os espaços são limitados demais, então, abre-se uma janela e uma outra possibilidade pode ser vislumbrada.

  A fumaça do cigarro que ele não fumava chegou até a minha janela e se instalou do lado de fora; agora, acompanha meu itinerário, quando eu descer, respirarei o ar de que ela é feita e, finalmente, as duas instâncias se encontrarão: a inquietude abandonada por ele em bolhas e o incômodo acolhido em mim, pela música dos meus fones.



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