quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

No rio do esquecimento

   Entrar no rio, de corpo inteiro. Molhar os pés, buscar aos poucos o lugar mais fundo, sem insegurança, pisando firme, confiante na procura. A água fria alcançando os joelhos, molhando as coxas, entrando nos vazios, ocupando cada um dos espaços, a água invadido o que no corpo é ausência.  Onde não existir carne, a água fará as vezes de fração de corpo. O rio e a pessoa, um começando onde o outro acaba; sem separação, sem limite. Incorporados. O suave e o grave; o úmido e o seco; a vastidão e as pequenas coisas.

  No rio, mergulhada nele, submersa naquilo que era longe e agora é dentro, é parte, se despir do passado, para receber o porvir. Abandonar na correnteza as despedidas dolorosas nos aeroportos, rodoviárias ou nas marquises dos botequins vagabundos, onde dividíamos as cervejas. Afogar o lenço bordado da avó, que nunca vamos usar, é só relíquia no fundo da gaveta, ocupando espaços, amarelando o linho, esvaziado de função; molhar definitivamente o livro, em que a leitura se recusa a avançar. Afundar os conselhos de quem insiste em escrever um romance no qual recusamos interpretar as personagens. Submergir as fantasias de carnavais passados e inundar sambas-enredo que deviam ter se limitado à avenida, mas insistimos tanto para fazer a alegria durar o ano e por isso carregamos um samba que toca muito triste agora; encharcar a secura das palavras, aquelas mal ditas, as nunca ouvidas, as que não puderem ser verdades, só desejo.

  Mergulhar o corpo inteiro, banha-lo nas centenas de lembranças abandonadas, nas próprias e nas dos outros, que também passaram pelo mesmo rio, deixar que elas atravessem a pele, invadam poros, orifícios, que detenham a respiração por longos e redentores segundos e depois partam. Um mergulho definitivo de cada medo, no próprio medo, para assim quem sabe curá-lo. Afundar os pensamentos muito cristalizados, quase imutáveis, levar à água as limitações, os preconceitos, as verdades absolutas e os sensos todos, o primeiro deles a ser afogado é o comum. Abandonar nas águas os infindáveis e indesejados ciclos, os clichês, os acostumados lugares, modos, gostos. Lavar a vergonha das irrealizações, os pudores com os próprios sentimentos, abandonar sob a água os vícios, os traumas, as contas em dívida, aquelas que nunca poderemos liquidar.

  O batismo providencial, no rio, para abrir espaços, desocupar prateleiras sentimentais, para ouvir o futuro apontando no corredor com os seus saltinhos barulhentos, descobrir novos rostos, gente que ainda não conhecemos e que precisamos muito saber quem são e elas saberem de nós. Para correr novos riscos, cair noutros lugares, sentir outras dores e estabelecer novos consolos.

  Molhar os cabelos e sentir a memória quase se esvaziar, manter só o essencial: algumas pistas do que fomos, do que já pensamos e apenas alguns indícios do turbilhão que sentimos. Esvaziar o cofre e desapegar dos cadeados, arejar para receber. Esquecer do antes para lembrar do que está vindo, do que passará pelo mesmo rio um dia ou que ficará incrustado e que nenhuma água, mesmo com toda força, lavará.

  Mergulhar para, finalmente, deixar a correnteza levar tudo o que prende, sufoca e ocupa sem serventia. No rio do esquecimento, abandonar toda a dor para que ela saiba passar, enquanto ficamos. E então, levantar do mergulho, sacudir os cabelos, abrir os olhos, buscar as margens e nascer para a vida que nos espera no solo. No rio do esquecimento, tentamos deixar aquilo que nunca nos deixou.



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