quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Esse jardim fui eu quem trouxe

  É um adulto, um jovem adulto em frente ao hotel, esperando um ônibus. É alto, postura ereta, cabelos castanhos cacheados e no alto da cabeça marrom, exibe uma  coroa. Dessas de papelão, brinde de um loja de sanduíches; um homem adulto fantasiado de nobreza numa quarta, às cinco da tarde. Primeiro penso que talvez estivesse com um grupo de amigos na lanchonete, colocou a coroa e se esqueceu de tirá-la, mas ele passa a mão nos cabelos, desprende um dos cachos da coroa e a ajeita melhor à cabeça; ele não só sabe que usa uma coroa de papelão, como faz questão de mantê-la firme, ajustada - a solitária dignidade de um rei.


  Entramos no mesmo ônibus, vamos em pé os dois; ele é mais alto e a coroa quase encosta no teto, ele a acomoda, cuida bem dela, tem apego ao seu símbolo. É claro que ele chama alguma atenção, mas os espectadores não são insistentes, olham-no e parecem  achá-lo bem natural, até. A coroa de papel pardo, fosco e instável dá a ele uma imponência improvável, uma coragem de assumir sua meninice de cachos brilhantes. É adulto, universitário e não dá a mínima para os possíveis olhares, essa segurança, certamente, é  o que faz com que pareça comum um adereço inusitado e também é o que nutre de um magnetismo muito peculiar sua figura. Vê-lo tão confortável no papel que ele criou para si, parece alimentar de esperanças cada desejo nosso ainda não assumido, parece dar coragem  para criarmos nossos próprios meios de vislumbrar um reino, onde caibamos com maior justeza.

  Abandono o rei, saio na chuva, e vou ter com a vida plebeia que me espera do outro lado de um estacionamento alagado. Mas a experiência do fantástico não me quer longe. Numa caixinha pequena, uma moça exibe um pequeno jardim. Ela coloca numa caixa os cheiros, a terra molhada, fofa, as pedras que parecem mais brancas sobre a terra escura, raízes, folhas no chão possível. Numa caixa pequena, as cores de Monet, a liberdade de sonho e bucolismo, num diminuto jardim projetado para dar espaço para sua felicidade repousar e dar frutos. Por alguns segundos eu estive no jardim do impressionista. 

  O que ambas as experiências me dizem, é que há sempre uma sede profunda por um lugar que mora dentro. Uma busca por uma parte onde nos reconheçamos, que devolva o que de mais essencial está perdido em nós ou nos apresente aquilo pelo que temos esperado tanto, entre noites sem sono e sonho sem cama. Usando coroas e alimentando jardins em caixas, às vezes parece que viver é mais uma invenção nossa. E certamente é, se tivermos condições de assumirmos nossas criações. A jardineira da caixa e o rei urbano são as expressões mais delicadas de que só quem pode nos salvar somos nós.

  Inspirada pelas criações alheias, eu acordei hoje com um jardim dentro de mim e uma coroa; ninguém há de me apontar na rua, porque não aparentam, mas se chegarem bem perto, talvez, vejam pétalas soltas voando,  sintam o cheiro do jasmim e reparem no brilho suntuoso no alto da minha cabeça. Selo o cavalo branco e acomodo as várias espécies de um jardim, bem aqui dentro. Por muito pouco nos salvamos todos os dias, entre caixas e papel barato, a vida é mesmo muito invenção nossa.





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