domingo, 21 de fevereiro de 2016

Não caber para existir

  Alargar as margens, desafiar os limites, esticar a linha e testar a sua resistência, saber até onde ela é capaz de alcançar. E, depois das insistentes investidas, descobrir o quanto ela ainda é capaz de permanecer, numa espécie de queda de braço improvável para saber quem sucumbirá primeiro. Uns apostam na linha, a maioria resignada, mas o braço resiste, ganha alguma força, porque não reconhece outro movimento, sabe que se sujeitar-se aos limites será irremediavelmente domesticado, liquidado na sua subjetividade; como viver assim? As horas passam, sente as cãibras, os músculos retesados, a ardência nas articulações, experimenta a miséria da solidão na luta, o abandono da paz, o permanente desassossego,  mas como não tentar? Como abrir mão da jornada e aceitar um lugar apequenado se depois da linha pode existir o seu lugar mais pleno?

  O lugar é quente, doce, definido, hospitaleiro, fácil de encontrar e se acostumar a ele. Bastava aprofundar raízes, mirar com gratidão o solo seguro e aprazível e permanecer, sem urgência, sem combates infindáveis, sem perguntas existenciais, só o incômodo com uma ou outra pomba circunstancial. Passagem discreta, sem suspeitas pelas águas claras e calmas de um rio antigo. Sem incomodar, sem deter a atenção para si, sem ter que cavar um lugar, sem a necessidade das mãos na terra. Era soltar os braços moles e respirar a brisa noturna, tomar banho morno e ter conversas sobre o tempo: - Viu como céu está carregado? Mas tá precisando mesmo chover.

  Mas, se para além desse chão macio os olhos sempre buscarem outras paragens, se o conforto do aquecido não for o bastante? Porque uma voz interior chama por um nome misterioso, porque as linhas, mesmo as mais fortes,  prendem um corpo, mas não podem conter o desejo da busca ou porque, num sonho, vislumbrou a possibilidade do encontro com mãos ainda desconhecidas; essas que dariam a volta pela cintura da moça, sem hesitação e a convidaria a ser raiz flutuante. Tiraria seus pés do piso estável, não ofereceria aquecedor elétrico, mas apontaria para a liberdade de correr atrás dos irritantes pombos.

  As fronteiras atrasam a partida, atrapalham os planos de saída, testam a paciência e o empenho dos braços que as desafiam. O tatame seguro convida para ficar, a experiência de um mestre promete que será uma questão de costume; "amor  também é aprendizado e insistência", ele diz. Mas não há  frio, dureza de solo,  vegetação fechada  e imprevisibilidade nas curvas que detenham aquilo que não quer ser contido. Os líquidos escaparão pelas  frestas, o vapor subirá e se camuflará de ar puro, o sólido se quebrará em pedaços e se sujeitará a ser pó algumas vezes, tudo para transgredir as linhas. O que quer que seja essa procura, esses olhos para sempre fincados no horizonte; ela é inevitável e genuína. Convida a querer bem mais.

  Não caber é um aviso das vozes de fora; transbordar é o jeito que a alma encontra para partir em busca da promessa, aquela atrás da linha. Ilimitada é a procura pelo extraordinário. O lugar quente nunca lhe dará aquilo que a perspectiva do horizonte pode oferecer. O braço não cede, ele até se abate um pouco, afrouxa as linhas, mas lembra do destino que deseja para si e se nutre dessa esperança. Não caber nunca é um jeito, ao mesmo tempo, doloroso e privilegiado de existir.


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