quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Morro de poesia, de amor ou de política

   As ondas se formam longe ainda, acumulam águas pelo caminho e, de repente, num suspiro do universo,
se desprendem do mar calmo, ficam altas, largas, mais azuis e se projetam violentas na pedra perto dos meus pés; ao redor deles, tudo é espuma branca. Um pouco salta até o asfalto, alguns respingos encontram o meu rosto, só a pedra é a mesma; nunca se move. Formam outras ondas e eu me sento para assistir ao movimento que parece o mesmo no início, mas se tornam muitos outros, até chegarem às pedras. Nenhuma onda se forma na mesma medida; e se compartilham de uma mesma intensidade brutal, são únicas no tempo e percurso que fazem até chegarem à pedra, ao meu rosto e aos pés.

  O céu de hoje é quase todo cinza, choveu a noite toda e não parece ser dia de ir ao mar, mas os homens mesmo do mar, os acostumados à força das águas e ao vento salgado, esses vêm, lançam seus anzóis e chegam a pegar um peixe ou outro. Meu avô viajava com o gado mesmo em tempo de chuva: perdia uma cabeça ou outra, quase se afogava, tentando salvar os animais de afogamentos em travessias, mas nunca se ausentava do que era ele. A natureza não é maior que o compromisso herdado de uns homens. Os veleiros, quase todos atracados, de velas brancas, tecido etéreo, preservam-se da insegurança de uma viagem e balançam ao longe,  numa coreografia bonita que chega a dar vontade de ser veleiro e balançar de um lado para o outro em paz, entregue ao movimento que querem as águas. Ao longe um cargueiro aponta, é grande, é assustador e parece bem próximo à praia, ele faz uma manobra demorada,que se estende por longos minutos e entende-se, na figura do cargueiro, o quanto custa a opulência.

  Não. Nenhum cenário é mais bonito do que este. Em dia cinza, com a chuva se acumulando nas nuvens e um vento furioso.
  Eu morreria afogada num dia cinza desses, num mar ensandecido desses. Eu morreria de beleza, sem dúvida, ela sempre me leva aos extremos. Eu morreria de ver poesia na espuma branca, de preferir os veleiros, os homens com seus peixes prateados, lutando no anzol, do que pelo cargueiro seguro ou pela previsão do tempo, que aconselha a não entrar na água. A poesia me mataria. Eu não tenho o costume da pedra.

  Um amor a quem eu não queria amar, desses que quando se afastam levam tudo com eles e quando se aproximam trazem coisas demais,  me escreve. Sabe que se aparecesse, de repente, se mandasse flores ou alguém, pedindo desculpas, eu não atenderia, mas quando escreve, está certo que jamais eu resistiria à leitura, tenho fraco pelas palavras escritas, sempre tive e ele sabe. Recebo as primeiras palavras, impregnada de desconfiança, de falta de coragem e segura de não ser levada por algumas linhas ordinárias. Burocrática, ainda corrijo palavras, substituo pontuações, mas já no segundo parágrafo não sei mais não aceitar as "coisas demais". Que transbordem, se  não couberem todas nos meus espaços vazios. O texto é ruim, mas o subtexto é o que importa. De novo, a figura da pedra impassível às ondas, apareceu no meu sonho de ontem; não sei ser pedra. Morreria desse amor escrito, de tentativa de poesia mal sucedida, de amor que é onda e carrega tudo consigo, quando parte e quando chega. Morro afogada em amor muito correspondido e excesso de passado, transbordando pelas margens. Mas não me limito aos erros, na escrita de uma língua, que é muito maior do que as gramáticas.

  No microfone do auditório quente e cheio, com pessoas sentadas no chão dos corredores, um homem fala apaixonado, não por uma mulher ou por um só homem, mas por vários deles e delas, um homem comovido convoca, a quem puder ouvir, à luta. Recorre às lembranças de um passado não tão remoto, projeta um desesperançoso futuro e embarga a voz, quando percebe que só tem duas mãos e o sentimento do mundo. Drummondiano sentimento, agonizante perspectiva, desesperador pedido:
- Vamos, gente, não daremos a eles o conformismo que eles querem!

  Eu quase me levanto e faço coro, vermelha de paixão, triste de medo de sermos só os dois. Algumas cabeças se abaixam com os olhos fixos nos seus telefones, algumas moças cochicham e riem; dois homens discutem um jogo do campeonato de futebol. Quantos querem chorar aqui? Quantos querem gritar palavras de ordem, entoar hinos e decretar greve geral? Quem quer assumir os riscos, também, por desconhecidos? Quem não suporta ser alcançado pelas ondas e continuar impassível? Ninguém se levanta, mas eu aplaudo sozinha e tenho o mesmo nó na garganta, quando olho para as minhas miseráveis mãos e esse sentimento que me inunda.
 
  Eu morro muito, eu morro a todo o tempo, sem os rituais ou lágrimas de saudade dos entes. Eu morro só de me levantar pela manhã e o sol bater no chão do quarto, da música que me lembra o amor que me escreve e pela mentira que eu ouço dos jornais.  Morro de  poesia, de amor ou de política. Só não morro de apatia. Eu não sou a pedra da arrebentação, às vezes, sou a onda, noutras sou o veleiro e em muitas, só a que morre na areia, comovida por tanta beleza. Mas de dureza ninguém morre em paz.







3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 19 de outubro de 2016
Prezada poetisa, romântica, política e metafísica
Amanda Machado

É verdade que levei um certo tempo para ler esta crônica. E o fato deu-se por que perdi-me na busca de um cunho filosófico único. Bobagem de aprendiz – pensei. Depois de longo exercício de reflexão de como buscar o intangível nas coisas do universo? O primeiro parágrafo exclui o empirismo, provocando a causalidade. Achei isto sensacional.

Descartes teve um sonho e transformou-o em expressão matemática, Wolfgang Pauli teve sonhos que Jung traduziu e devolveu a Pauli, que fez disto a alavanca que impulsionou a Física Quântica. Então, há de haver sempre uma causa, um suspiro do universo para que movimentos transladem de um campo a outro, de uma dimensão a outra ou de uma percepção à outra, mesmo que sejam sonhos.

Haveriam então chaves codificadas nos próximos parágrafos? O segundo parágrafo sugere a introdução do racionalismo de uma forma direta, com justificativas históricas. Pincela a existência do homo sapiens sapiens (o avô, os pescadores et coetera) em detrimento ao homo sapiens nequiquam.

Mas há ali um desejo de se ver jogada (no caso a moça da história) de um lado para o outro no etéreo, tipo “deixa a vida me levar, vida leva eu” de mãos dadas com a teoria do Éter, que Einstein jogou no lixo e a Física Quântica resgatou, como coisa e propriedade nossa. Quais são as forças que regem o universo? A gravidade, sim, claro, vem sempre em primeiro plano, mas existem outras forças, outros encantamentos, outros desejos, ao mesmo tempo que haverá de existir sempre a castração do ego sobre tudo isto, feito um cargueiro assustador.

Vem a seguir um parágrafo torto, pequeno, onde acha o cenário lindo, e com ele a eterna dicotomia humana – ser ou estar. Intrigante. O costume da pedra ...
De que é feito afinal o corpo, senão de uma massa moldada sobre a alma? A parte visível é feita de tecidos, metais, minerais, proteínas, hormônios, etc. Tomemos qualquer uma destas partes, qualquer uma e chegaremos na pedra. Filosofia? Não – isto é física pura. A pele onde habito está fisiologicamente morta, estou sob um manto sem vida, e isto explica por que as casas vivem cheias de poeira branca – são partes nossas que vamos deixando com rastros da nossa existência. Poeira branca, espumas brancas que morrem na pedra. Hummm ... Então a morte é poética, de fato.

Paulo Abreu disse...

2ª parte

É quase lógico e óbvio que a moça na pedra sobre a espuma branca da pele acabaria por falar de amor. E aí é de uma graça infinda, pois assim como uma criança segura com força na mão do pai, ela se apega à poesia, cuja porta abriu no parágrafo torto e releva Gonçalves Dias:

Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!

De súbito volta à superfície da realidade, como que digladiando com o etéreo. Há coisas coisando em Pindorama. Pessoas com espelhos e lantejoulas à mão querem que os nativos entreguem o ar, o mar, o solo e a alma em troca das suas bijouterias. Quão cínicos são. Falar-lhes-ia face a face, mas não há como - são apenas imagem projetada na tela LCD da mãe gentil, que pariu homo sapiens sapienes e estes, homo sapiens nequiquam, de quem já falei aí atrás. São os mesoclíticos da catarse escatológica.

Mas a moça cutuca a onça, põe o dedo na ferida do empirismo que assola a pátria amada et orbi – a intuição, a coisa que está levando a juventude a não pensar mais – eliminaram a causalidade com seus smartphones, apps, links, globetes, chacretes e modernetes. Para que pensar de onde vem e para onde vai – use a intuição. E ela se cora, fica vermelha de paixão e triste de medo.

Grita desesperadamente:

Quantos querem chorar aqui?
Quantos querem gritar palavras de ordem, entoar hinos e decretar greve geral?
Quem quer assumir os riscos, também, por desconhecidos?
Quem não suporta ser alcançado pelas ondas e continuar impassível?

Pede socorro, a vida está sendo trocada por espelhinhos e lantejoulas, mas as pessoas preferem seus smartphones, onde não pensam, não tecem e nem fiam.

E eu aqui do meu lado aprendendo a ser louco, um maluco total!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 22 de outubro de 2016(esse ano estranho e absurdo)
Caro Paulo, leitor profundo das coisas escritas, quase escritas e ainda não escritas.

Que análise sensacional. Tão instigante e cheia de referências que fiquei nela por dois dias e meio. Lendo, divagando, voltando e seguindo mais a frente, chegando até à beirada, sem medo, tentando tomá-la toda, sem esgotá-la. E não acabou.

As três mortes estão aí no seu texto, analisadas a níveis surpreendentes. Cada morte examinada e descrita como se passassem por uma reconstituição, ainda mais real e mais fiel que os fatos em si.

Sobre a morte pela política:"a vida está sendo trocada por espelhinhos e lantejoulas, mas as pessoas preferem seus smartphones, onde não pensam, não tecem e nem fiam". Só a loucura nos salvará. A boa, não esta que está por aí, tomando os bancos e as bancadas.

Um ótimo final de semana