quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O amor anda atrás do infinito e eu vou com ele

  Eu comecei essa carta com o seu nome, mas foi estranho vê-lo escrito e depois, separado por uma
vírgula, metaforicamente não sobrevivemos às vírgulas entrepostas por nós. E agora, embora eu deseje distância,  não quero matá-lo novamente com uma vírgula entre você e tudo o que quero te dizer.
  Primeiro, eu quero que saiba que embora eu o tenha evitado o quanto pude, que eu não tenha atendido às suas chamadas, não tenha descido até a portaria para entregar suas coisas, não tenha lido nenhuma das suas mensagens ou ido aos lugares que você esperava me encontrar, eu não desejo uma completa ausência sua. Pode compreender isso? Não quero vê-lo, falar com você, saber coisas novas sobre a sua vida, compartilhar músicas, assuntos, pessoas, parques, bibliotecas, êxtases, dores, salas de espera, parte de trás das igrejas, corredores de supermercados, mas quero ter a certeza que você existe e passa muito bem. Para mim, você ficará muito vivo como memória e não mais como um agora e perspectiva de futuro, quero que você seja minha história. O que morreu foi um amanhã que sonhamos dividir, o seu nome eu ainda vou falar, do seu rosto eu vou saber sempre, dos gostos, das cicatrizes, do cheiro, nada disso foi embora com você. Você me deixou muito e eu sei que não posso devolver a você ou doá-lo a quem quer que seja.

  Eu não queria escrever essa carta, não queria falar o que eu já disse outras vezes, com as mesmas ou novas palavras, mas também não queria que uma mensagem no tapume de uma construção fosse a derradeira comunicação. Eu escrevo para você, para que saiba que eu não vou partir em silêncio, embora a minha mudez progressiva, sem que você percebesse, tenha sido o meu adeus mais longo.
  Eu gostava de falar, se lembra? Eu gostava de falar com você; não era falar apenas, era falar com você, eu gostava porque você me ouvia; só deixei os silêncios entrarem nos diálogos quando pareceu que eles equivaliam, para você, ao que eu tinha para dizer. Está me lendo? Ou lê como me ouviu nos últimos meses, com o seu diálogo terminado na cabeça?
  O que eu quero te dizer é que sua mensagem escrita com letras maiúsculas, spray azul, no tapume de alumínio em frente ao meu prédio foi mais um diálogo terminado, sem interlocutor, sem chance para a minha fala. O que eu quero te dizer é que eu sempre pude, quis e tive o que falar, mas era campo estéril, eu jogava as sementes, aguava como podia e já não nascia mais nada.

  Eu escrevo uma carta que talvez nunca chegue a você. Talvez as frases, os encadeamentos de ideias, as palavras que  mais o interessarem sejam lidas silenciosamente, depois, sussurradas e finalmente, gritadas, quando tiver bebido demais e se lembrar dela. Mas será que o atravessará de verdade?
  A sua mensagem escrita no tapume durou apenas um dia, acho. Passei por ela várias vezes, mas só li uma, mesmo assim, jamais esquecerei do sentido todo que estava ali. Eu a fotografei com uma única mirada, no susto, na surpresa, na indignação com o seu grito na porta de entrada do meu prédio.
  A mensagem no tapume era para você. O meu nome era o vocativo, estava com uma vírgula e iniciava a frase, mas Allan, a mensagem era a sua explicação para o fim, era a sua desculpa e a sua absolvição. Eu não estava ali, embora o meu nome estivesse.
  O que eu quero dizer a você é que sou grata por ela, grata porque depois que a apagaram e eu entendi o destinatário dela, eu quis fazer o mesmo. Escrever uma carta para mim, uma carta que me explicasse a tristeza que eu sinto agora, porque partir é doloroso demais, embora tenha sido uma escolha muito pensada e profundamente sentida, mas a cada dia que eu ficava, você desaparecia um pouco de cada vez das minhas páginas. Eu não queria apagá-lo.

  Eu escrevo essa carta para dizer que eu concordo com a primeira frase da sua mensagem "Não era para sermos felizes para sempre". Nem nós, nem ninguém, não o tempo todo, não indefinidamente. Allan, o "para sempre" é o quê? Ninguém alcança o para sempre, por que nós alcançaríamos, por que nos amamos? Nem o amor alcança, ele chega, no máximo até a esquina, se senta e nos espera, não vai a lugar algum completamente sozinho, nós é quem somos responsáveis por ele, entende? Alimentar, tratar das dores, educar, levar para passear, deixar em quarentena quando um vírus o engole, trocar as compressas quando a febre for muito alta, comemorar as conquistas diárias dele. Nós temos a guarda do amor; não é ele que nos leva, somos nós que fazemos o passaporte e o ajudamos a passar pelas alfândegas. Nós arrumamos a sua mala, o levamos para almoçar e passamos nele o protetor solar, antes de irmos à praia.

  Eu escrevo também para dizer que discordo completamente do trecho "o mundo nos abençoa". Não é ele que nos abençoa, nos escolhemos e nós sofremos as consequências das nossas escolhas, o mundo é um lugar, Allan, a entidade está em nós.
  Sim, há sempre as especificidades de cada existência, as injustiças, os sofrimentos, as desigualdades, as limitações, que alguns chamam de destino, mas Allan, esperar que o mundo nos abençoe é de um cristianismo ordinário demais.
  O mundo é o mundo, nós que nos movemos nele. Decerto que sem tanta autonomia e as certezas que gostaríamos, mas ainda assim, somos nós que detemos a possibilidade de algumas escolhas; não muitas, talvez, mas são o que são.
  Então, Allan, nós abençoamos ou não o mundo, o nosso próprio, o interior.

  Eu comecei essa carta, especialmente, para responder a um trecho que não me saiu da cabeça:"Em todo deserto há oásis, um Edén". Sim, acho que você se referia que esse lugar de descanso e prazer, foi o que tivemos. O amor é isso para você? Ainda é?
  Allan, eu também pensei que fosse, que descansar era o amor e por isso, eu escondi os meus desertos para que você encontrasse o oásis; sucumbi, compreende? Não pude sustentar o oásis, quando o que mais tinha era deserto.
  Eu queria que você tivesse atravessado comigo. Com sede, medo, calor durante o dia e muito frio, durante à noite. Eu tentei contar para você sobre os meus desertos e você continuou me pedindo o oásis. O que eu entendo agora é que o deserto é o amor. E é isso que eu quero me dizer: não esconda mais os seus desertos, não se cale pelo medo da areia sair pela sua boca.

 A última frase da sua mensagem foi definitiva, também, para o meu entendimento: "O amor sempre anda no infinito". Eu acho que o amor sempre anda atrás do infinito. E eu vou ir com ele, Allan.
  Eu não posso ficar onde o amor não caminhe; o infinito é demasiado escondido, mas eu tenho tempo para buscá-lo.
  Allan, desculpe não escrever essa mensagem para você, mas você teve a sua, apagaram-na dos tapumes na segunda-feira, mas eu espero que ela apazigue a sua dor. O amor anda, Allan, ele quer andar. Leve-o com você, eu trago o meu. Da sua breve história, Alice.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais neste sombrio verão de 2019

Meritíssima Amanda Machado,

Eu preciso falar sobre o caso Allan/Alice. Considerando que os membros do juri ainda não se pronunciaram em seus comentários, como rábula dativo, vou defender os princípios do Allan, para que fique registrado nos autos do processo da Alice.

É...hummmm...então, lembro das aulas de catecismo onde a professorinha de voz baixa e olhar duro falava que as palavras sagradas não devem ser analisadas ao pé da letra. E as palavras de Allan soam sagradas, pois as reforça com Verdade; Abençoa; Éden e Amor.

Allan escreveu "Alice, não era para sermos". Não era para sermos e fomos assim mesmo. Está lá, como prova 1, irrefutável, Meritíssima, irrefutável.

Allan escreveu "Felizes para sempre". Ora, direis, ouvir estrelas, até o átimo, senhores jurados, é um processo infinito. Felizes para sempre não é uma prerrogativa de um processo duradouro, é o êxtase do momento, e êxtase é infinito enquanto dura.

Aqui, senhores e senhoras do Juri, há uma dubiedade, pois na Prova 3, Allan denuncia que "A verdade é a felicidade". Assim está escrito que devemos procurar a verdade porque a verdade nos liberta - esta é a chave para a felicidade.

Na prova 4, "O mundo nos abençoa em todo deserto". Ora, ora, ora. Não foi assim com Israel nos 40 anos de deserto? Não foi assim com João Batista? Não foi assim com o Cristo?

Na prova 5, nosso Allan fala de uma forma fantástica "Há oasis um Eden. Aqui, senhores e senhoras membros deste tribunal, na verdade eu vos falo que sobre as Memórias de Futuro do Amor dos quais evolui sua linha de raciocínio a doce e meiga Alice, não hão de ser invalidadas ou anuladas por que ela deseja.

Meritíssima, saiba que a memória de longa duração fica no hipocampo, situado no sistema límbico, e é a principal ferramenta capaz de formar e evocar memórias e/ou de induzir o resto do córtex cerebral a fazer o mesmo, volutaria ou involuntariamente.

Allan, um erudito da língua portuguesa, trás Oásis no plural, pois há um só Paraíso, entre tantas ofertas de prazer e descanso.

Concluindo, Meritíssima, "O amor sempre anda no infinito". Como definir o abstrato? Como tangenciar um sentimento? Se se morre de amor, se morre? Foi assim que aprendemos?

Data venia, Meritíssima, Allan está condenado à paixão, e Alice tem o direito de se desvencilhar deste caminho, mas não pode jurar que será tão fácil assim. Amar dói!

Senhores jurados, julguem com o coração!

Paulo Abreu - rábula dativo das causas perdidas

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 12 de janeiro (sombrio, mas os amores resistem) de 2019

Ilustre defensor dativo Paulo Abreu,

A defesa que construiu é bastante envolvente, cada trecho, cada frase da mensagem de Allan (incluída entre as provas, nos autos do processo) recontextualizada, sugere a submissão do caso a um novo julgamento (ou a quantos outros exigirem.

A apelação da defesa é, sobretudo, comovente. Que culpa os amantes têm de amarem ou deixarem de amar? Que culpa os amantes têm de escreverem cartas de amor ridículas (se todas "são ridículas, senão não seriam cartas de amor"?).

Todas as provas da defesa serão acolhidas por este tribunal, assim como todas as provas de acusação; cabe ao júri não-manifesto suas considerações. Decidimos, portanto, que a sentença do caso será adiada até os próximos julgamentos (sem data nem limite para novas audiências).

Encerramos a sessão, mas não o caso...este anda com o amor no infinito.

Amar dói, ilustre advogado, mas não amar deve ser mais desolador, suspeito.

Agradeço a defesa irretocável e o registro muito bem articulado para os autos deste processo.

Grata pela presença luminosa do leitor sempre iluminado.
Amanda