- Vou ficar.
Ela diz depois de uns minutos silenciosa e reta.
- Mas vai embora.
Sou eu quem respondo, com a voz trêmula, tentado ser coragem.
Sabemos uma da outra há muito. Nos vemos com uma frequência cuja medida eu não me esforço para conhecer. Suas visitas breves desalinham o meu cotidiano, afogam minhas certezas frágeis - que sucumbem em poucas braçadas -, apagam algumas luzes e estremecem alguns sonhos - pendurados em linhas vulneráveis espalhadas pela casa.
Domingo pela manhã ela veio, sem pedir ao porteiro que a anunciasse, passou por dois portões, muito seguros, do meu prédio e abriu a minha porta sem dificuldade. Reincidente, ela invade, assalta meus desejos de alegria, sequestra minhas vontades e rouba alguns dias meus para não fazer nada com eles. Suspende a minha produtividade para o trabalho e também o meu delicioso ócio, fecha meus livros, esfria o apartamento e me aponta a cama - único lugar que me permite frequentar - para me fazer deitar com o medo, a culpa e as solidões, novas e remotas; estridentes e finíssimas; loquazes e discretas; diurnas, noturnas, diuturnas, soturnas.
Se escondo o rosto debaixo do lençol, para esquecer um pouco dela, ela coloca uma das mãos sobre os meus pés. Se arredo sua mão, ela vem arrumar o travesseiro na minha cabeça; maternal no gesto, inquisidora na presença.
Não vem de coturnos e roupas negras; é, em imagem, uma dulcíssima visão. Etérea, fluida e cercada de delicadezas. Lava as mãos, antes de colocá-las no meu peito, escova os dentes, depois de devorar meus risos. Não me ameaça, não grita; sussurra ou silencia.
Seus olhos cinzas, pintam minhas esperanças temporariamente; quando vai não deixa marcas visíveis. É generosa ao dividir-me um pouco com os meus afetos: abre espaço para o gato amarelo se enroscar nos meus pés e deitar no meu colo, se afasta para os braços que me buscam, depois de não terem respostas.
Ela me toma, mas também me deixa afetá-la, escuta as poesias que leio em voz alta, não interrompe os meus choros e não censura os risos que entram pela janela e me contagiam, por alguns minutos. Ela é madura e dócil, no café da manhã, mas também dura e inflexível, na madrugada.
Ela sonha os meus sonhos; mas os lê muito diferente do que eu escrevi. Divide o meu prato de almoço, me tira o apetite do final da tarde e alimenta a minha noite com um temporal de pensamentos que eu não controlo; me afogam. Me obriga a dizer palavras ao telefone que eu não sei se gostaria de dizer; não me deixa atender a algumas chamadas. Propõe cortes, com a desculpa de mudança e muros, para a minha segurança. Ela me quer quase inteira para ela. Só me tenho quando ela vai ao banheiro e se demora, quase me esqueço da sua indesejada visita.
Se intromete nos assuntos da família, sugere rompimentos de amizades e amores. Colore de preto e branco as fotografias que eu já tinha coloridas.
Desliga a TV, guarda minha roupa de ginástica, esconde os chás, os incensos, prende os meus pensamentos fortuitos na sua bolsinha de mão alaranjada. Vai à praça, ao supermercado, à padaria e fica comigo nas filas, não me deixa sorrir para as atendentes dos caixas. Me emudece, esconde de mim as belezas que estão todos os outros dias sob o meu nariz.
Deixa as boas memórias menos visíveis, a casa menos aconchegante e o mundo exterior muito mais repulsivo. Reaviva meus medos, coloca junto do copo com água no criado-mudo os traumas, que eu achava superados e me convoca a visitar meus vazios; que parecem ampliados e infinitos quando ela os abre com as pontas dos dedos.
Mas, também, acho que ela me ensina, me faz mais resiliente; talvez mais humilde e ainda me mostra que eu não estou segura atrás das portas e dos porteiros, dos sonhos e das esperanças ou dos amores e das suas promessas.
Estou sempre ao alcance das suas visitas impostas e vulnerável aos seus ensinamentos. Já não tento expulsá-la, mas também não ofereço hospedagem longa. É um desconforto nas primeiras horas da sua chegada, uma angústia com sua perseguição implacável, até não me prender mais à presença dela e ir sendo com o que posso e o que sei ser com ela.
Chamo-a por TPM, em alguns períodos, de Inferno Astral, em um muito específico ou Coração Partido, Desilusão, Mágoa Antiga, Ansiedade, Melancolia ou só Tristeza. Sua música é bonita, mas não a convido a durar. A tristeza também me faz pensar e desejar sentir para além dela.
A tristeza toca um violino angustiado e profundo, pede um prato de sopa e se senta ao meu lado com o cabelo molhado e cheiro de banho recém tomado. Eu escuto a sua música, jantamos juntas na noite de domingo e eu peço que ela vá embora, mas não preciso dizer palavra alguma. A melancolia ouve a minha voz silenciada por ela. Quando reponde, eu nunca sei se no meu tempo ou no dela.
Amanhã, no café, queria que ela não estivesse. Mas se estiver, saberei encontrar o gato amarelo e os abraços que conseguirem me alcançar. Visita assim de um domingo não costuma se estender muito; é no que eu me fio para sonhar esta noite.
2 comentários:
Como me identifico...
beijo
<3
Que passe ao seu tempo então... Beijos!
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