O tempo entre a mão da mãe, soltando a do seu filho, no portão da escola, depois que o sino já soou, é diferente do tempo do homem que abriu e fechou o portão para mãe e filho. O gesto da mãe dura uma eternidade, até o filho crescer, ela morrer e o filho soltar a mão do próprio filho em outro portão de escola. Já esse tempo do homem é a sua força de trabalho, a produtividade do tempo que alimentará seu filho, cuja mãe soltou a mão também em outro portão.
A mãe sentirá por anos a mão do filho escapar da sua, voluntariamente ou não. O filho sentirá a mão da mãe soltar delicadamente da sua, para mais tarde, tê-la de novo a cada retorno.
Já o homem da guarita, precisa abrir e fechar o portão oito horas por dia; quanto menos durar cada vez, mais vezes poderá fazê-lo.
Quando o gato amarelo observa a chuva, ele se entrega completamente à contemplação das gotas, espalhando-se pelo piso escorregadio da varanda, pelas bordas das folhas das plantas, encharcando as roupas do varal da vizinha do apartamento de baixo, que saiu e não pensou que pudesse chover. Quando o gato entrega-se à observação da chuva, o tempo dele não escoa por entre valas, ralos, bueiros ou bacias de drenagem; o tempo dele agarra-se, mata a sede e se despede das águas. O gato não perde com a chuva.
Quando de dentro do carro, às seis horas de sexta-feira, um dilúvio ameaça a cidade, cujo trânsito já está lento, qualquer água vinda do céu é malquista, a cada gota, um minuto a mais de caos, um minuto a menos de descanso. O gato se expande em tempo e satisfação; a gente se desmancha de ansiedade e derrota.
Uma tartaruga atravessa o quintal. Na aspereza das suas dobras, histórias humanas e de outros animais que ninguém mais conhecerá. A tartaruga viverá mais que os humanos, gerações a verão atravessar o quintal.
Uma tartaruga atravessa o quintal, enquanto os humanos da casa nascem, brincam com ela, a abandonam, aprendem a escrever, a se comportar, a beber, a se apaixonar, a se desiludir, a trabalhar, a casar, a ter filhos e, depois, se deitarem no chão do banheiro de angustia, saltarem de uma ponte seguros por um elástico porque querem desafiar o medo, se trancam no carro, antes de um decisão, por covardia e perdem lembranças no esquecimento da idade avançada, que é sempre menos do que da tartaruga. Tudo isso, enquanto a tartaruga ultrapassa os tempos no terreno quadrado nos fundos da casa.
Quando a educada recepcionista pede paciência, na antessala do consultório, é quase com uma dor física que recebe o pedido, embora ainda não seja, porque teme chegar esse momento e cada minuto de espera é a possibilidade de mais tempo até a cura ou, mesmo, da impossibilidade da salvação. Como explicar que talvez não exista tempo para esperar mais?
A paciência se irrita com a temperatura do ar-condicionado, com o casal de idosos que assistem, cada um no seu celular, a vídeos aleatórios, sem fones de ouvido, com o barulho das bolhas de ar do filtro de água, a cada vez que é acionado, com o cheiro de aromatizador de lavanda, quando abrem a porta do banheiro, com o futuro que teme não ter, com uma doença que talvez se espalhe, enquanto aguarda os quinze minutos de atraso do doutor.
Mas depois, quando o médico explica o prognóstico, a paciência, enfim, se assenta, se deleita com o futuro que virá, com os muitos vídeos que ouvirá sem escolha, com os aromatizadores de ambiente e as bolhas de ar nos filtros de água. A paciência quer ouvir do digníssimo homem da ciência que está tudo bem um caroço, uma protuberância cutânea sem importância. A paciência quer se esticar na cama do consultório e dividir com todos da antessala, corredor, andar, prédio, quarteirão e avenida, que tudo bem os quinze minutos mais de espera e que o seu futuro precisa começar já; que embora haja tempo, não há tempo a perder.
Na área de embarque de um aeroporto, há alguém que espera por duas horas e não se ressente, esperará por mais duas e não reclamará com ninguém. Quatro horas mais e alguém retornará de um ano de distância, trezentos e sessenta e cinco dias de desaparecimento físico do mesmo território. Quatro horas de espera dócil.
No mesmo aeroporto, alguém que não veio e outro alguém que se atrasou para uma chegada. Esperas que se prorrogarão e que talvez se dilatem tanto, que se solidifiquem em espera e nunca encontro.
O mecanismo do tempo é essa engrenagem que pede urgência para determinados eventos e paciência para muitos mais, que prepara uma mão para partida e a outra para uma acolhida infinita para além do portão da escola.
E se descobríssemos numa manhã de quarta-feira, que a ciência constatou o fim do mundo, num dia muito mais próximo do que os quatrocentos e oitenta meses que esperávamos viver? Que tipo de amantes seríamos depois dessa revelação? O casal que termina na véspera do carnaval para aproveitar os cinco dias sem compromisso romântico ou os dois jovens de vinte anos que se casam urgentemente para não terem o coração mais vezes partido?
Abandonaríamos a casa ou nos trancaríamos nela? Que casal de namorados seríamos se uma hecatombe se aproximasse dos nossos planos e dos futuros que poderiam ou não se realizar?
Nos dispensaríamos da angústia partilhada dos últimos meses de nostalgia ou mergulharíamos nela?
A quem perdoaríamos ou pediríamos perdão? Qual arrependimento teríamos, por azar do fim do mundo decretado? De qual decisão equivocada nos orgulharíamos, por sorte da destruição completa revelada?
E essa derrocada anunciada nos levaria para uma análise sociológica do nosso romance até aqui ou nos afastaria de nós para nos entregarmos à humanidade agonizante? Militaríamos por um fim digno para todos ou beberíamos taças de vinho em todos os jantares?
Se o fim do mundo fosse anunciado amplamente, com quem faríamos contato primeiro, se não estivéssemos em frente à mesma tela? Se escolhêssemos um ao outro, quem de nós falaria as primeiras palavras e quais seriam elas?
Além do futuro, o que mais perderíamos se o nosso e todos os amores do mundo tivessem os seus términos iminentes? É mais lamentável por ser amor ou só os amantes pensam nisso? Com que palavras enterraríamos os nossos mortos ou a nossa própria morte? E o que teríamos para inventariar para um outro mundo que substituísse esse nosso?
Um dente ferrado, um amor inventado, uma febre não explicada, um parente sem rumo. Uma porta aberta, uma entreaberta e uma ignorada. Uma janela quebrada, uma lateral do quarto de dormir. Um experimento, um verso ingênuo, uma musa de pescoço em riste no camafeu que compramos na feira de antiguidades da Praça XV. Um balde de tristezas, uma paixão não correspondida, um litro de aguardente intocado debaixo da pia. Uma caipirinha, uma pizza, uma igreja, um restaurante, um cinema, um museu, um pedaço de calçada favoritos no mundo.
Uma fogueira a ser feita, uma amizade que escorre por uma fresta invisível, uma esperança de mochila e tênis, que aprende a ler e a abaixar a tampa do vaso. Um homem cordial e outro que grita. Uma mulher submissa e uma mulher. Uma mãe sem memória, uma certidão de nascimento com paternidade desconhecida e dois ingressos para o show do Gilberto Gil. Um apartamento financiado, uma carreira que não se consolidou, uma via que ainda não tomamos, uma dúvida, várias dúvidas.
Qual o livro, a música, o filme, a peça, a obra de arte ou a dança que repetiríamos na despedida? O que levaríamos e o que ficaria de nosso para que os arqueólogos de um outro tempo nos descobrissem? E se ele achar uma colher, um talher que nunca escolhemos com cuidado, porque foi sempre o mais barato e prático, mesmo assim ele poderá saber de nós? E se ela achar um livro nosso com dedicatória minha ou sua ou as duas, com qual delas a arqueóloga desavisada se emocionaria mais?
Guardo com cuidado as cartas e os livros que me mandou e, mais, escrevo com cuidado as missivas e os textos nos livros que te dedico, talvez isso nos salve para a eternidade ou talvez as colheres é que nos mantenhará vivos.
Se o mundo acabasse antes dos quatrocentos e oitenta meses que calculamos ainda ter, o que pensaríamos de nós, da vida que compartilhamos até aqui? Essa vida entraria nas nossas prestações de contas como algo fundamental ou um recorte mais aprazível do que determinante nessa existência em risco?
Nós vamos à terapia, atravessaremos o Atlântico de novo e definitivamente ou nos despediremos na esquina. Só não vamos mais esperar pelo fim do mundo sem tentar existir um pouco mais ainda.
Às vezes nem o esforço empenhado no olhar é capaz de transmutar o simplório, ultrapassá-lo ou trazê-lo à outra perspectiva. Às vezes é só isso mesmo. Nenhuma outra camada. Nenhum sinal no fundo da xícara, depois do café. É verdade que as grandes coisas vêm, tantas vezes, sem embrulho de presente. E ao sabermos disso, estendemos a mão a qualquer oferta ordinária, na esperança urgente de um regalo muito raro. E não é. E não vem e não virá tantas vezes.
Amanhece frio, mas uma faixa de sol no chão do quarto já parece antecipar a tal benesse. Pode ser só sol ou o prenúncio de um dia iluminado. Nenhuma mesa de café à espera, o atraso é o mesmo dos outros dias, mas o banho é o mais quente das últimas semanas. A água na leiteira ferve enquanto enxugo os pés, saio do banheiro, penduro a toalha na área de serviço e despejo a água no filtro com pó de café, pego a xícara no armário, coloco três colheres de leite em pó, cuja lata já estava na bancada e preparo o pão, do dia anterior, para colocar na sanduicheira. É a mesma coreografia há tempos, só reconfigurada nos fins de semana.
O cachorro na casa ao lado late com o mesmo vigor das outras manhãs — durante o restante do dia ele dorme e às vezes solta um arfado — o pão está um pouco torrado demais, mas os meus pés estão secos e não deixei a toalha na cama; pequenas vitórias. A louça fica suja em cima da pia, porque só tenho tempo para me vestir, escovar os dentes e secar um pouco cabelo; imperceptível derrota.
No carro de aplicativo, não há música, tampouco uma análise do motorista sobre a situação atual da política no país; vamos silenciosos e cordiais. Passo a manhã, escrevendo um relatório com números, nenhuma epígrafe, nenhuma figura de linguagem para salvar o acostumado leitor. E talvez seja melhor assim, para ele, sem comoção, sem surpresas. O sol não alcança a sala de onde trabalho, mas ainda está radiante lá fora. O gosto do café com leite permanece o dia todo, mesmo depois do almoço.
Quando termino o dia de trabalho, não há mais vestígio de sol. Resolvo ir ao Centro, antes de ir para casa, porque quero qualquer coisa de especial. Alguma coisa que submeta as manhã de água fervendo, depois do banho, colheres cheias de café ou leite em pó, de latidos fortes de um cão que não é meu, de pão queimado e fruta colocada na bolsa, antes de sair.
Subo o calçadão mais movimentado, olho vitrines, admiro a diversidade de rostos e, finalmente, escolho um café com mesas de bambu e toalhas de renda, para me sentar. A garçonete é acolhedora, esquadrinho todas as páginas do cardápio e nada parece ser capaz de me afastar do sabor do café com leite da manhã. No balcão, tortas com coberturas volumosas e enfeitadas com granulados e pedaços de frutas parecem ser a solução. Me aproximo do vidro e contemplo a beleza de um bolo de três camadas com cerejas no topo. Eu quero a cereja. A atendente corta um pedaço, serve em um prato branco com flores estampadas e bordas douradas. Já não me lembro de que é feito o recheio.
Vermelha, brilhante, redonda e vívida, uma cereja em meio a nuvem branca que cobre um bolo cujo sabor ainda terei que descobrir. Com o garfo, tiro pequenos pedaços de três camadas de pão de ló recheado e levo à boca, a língua reconhece o doce: é creme belga. Mais pedaços e mais reconhecimentos: o barulho da colher, raspando o fundo de uma panela que a minha mãe me dava, antes de lavar a vasilha que ela usava para fazer a sobremesa de domingo; mais tarde, o creme ainda pouco espesso que eu levava à boca para experimentar, quando eu fazia mesma receita da minha mãe nos domingos mais recentes. O leite condensado e a maisena juntos sem nenhuma massa empelotada; era assim o creme da minha mãe.
Mas a cereja eu deixo por último, foi por ela que eu cheguei até ao creme, foi por ela que eu me levantei, fui ao encontro do balcão e recusei dezenas de outros sabores. A cereja é a promessa de um dia invulgar. A cereja não é só a a decoração do paladar. A cereja é a epígrafe, o soneto, a mesa de café da manhã, a música agradável no carro de aplicativo, é o sol no meu cabelo, enquanto eu trabalho. Ela está só, agora, no prato de flores rosas e lilases, com borda dourada.
Então, espeto o garfo na fruta diminuta e vermelha, ela toca os meus lábios e os meus dentes rompem a película vítrea que a encobre. Depois da sua textura plástica, uma parte suculenta e dulcíssima atravessa minha língua e escorre pela garganta. Finalmente, a vida.
A água está no pote, a ração eu acabo de trocar, já abri a porta da varanda e aparei o pequeno trecho de grama da área onde estendo as roupas, para que fique numa altura ideal para ele afiar as suas unhas. Cuidei da trilha sonora e limpei as angústias no tapete da porta, antes de entrar.
No apartamento 201 de um prédio barato numa cidade, que hoje é cinza, inventei o lugar idílico para romper com qualquer sofrimento.
Dei um nome curto a ele, duas sílabas que eu pronuncio suavemente, às vezes ele me olha quando eu o chamo, às vezes continua com o olhar parado para alguma estrela que não posso ver. À ele, invariavelmente, ofereço o que não tive e não sei calcular se recebo o que preciso.
Todos os rituais se expandiram e tornaram-se mais complexos com o passar do anos. São unguentos, regalos e alentos que tentam a cura para uma ferida que não sei onde é. Mas, hoje, nada ainda que o arranque da sua solidão domingueira, de mil manhãs.
O gato, eu o conheço quase bem, tem dessas maneiras. Às vezes se zanga, às vezes se isola sem nenhuma razão aparente. Não há rotina e afeição que o capture do cativeiro que ele se impõe. Vivemos um dueto dissonante, quando eu ofereço proximidade, ele prefere o isolamento. Quando eu necessito de individualidade, ele invade meu banho, minha cama, minhas páginas com parágrafos iniciados e os meus papéis de razoável importância.
Um gato que era para ser breve, repousou ferido no meu tapete, atravessou um corredor de plantas e se apossou da almofada terracota, do colchão de molas, da pia da cozinha, do filtro de barro, que ele abre docemente com uma pata afiada e um pouco torta. Um gato amarelo e levemente estrábico abandonou-se no quarto e sala alugado de um bairro do Centro e parece durar tanto quanto eu jamais imaginei que pudesse, um dia, me suceder.
Depois, passou a morar nos meus sonhos, no meu ócio, nas minhas dívidas de cartão e dúvidas existenciais, pesquisou minha biblioteca, lambeu as minhas frutas, afundou o meu sofá e eu obedeci a todos os desejos que eu li nos seus sentidos.
Preparo a casa para o felino amarelo, desocupo os espaços, podo as plantas nos vasos e o gramado, subo ou abaixo as persianas, deixo mais fresco ou mais quente qualquer ambiente que ele escolha e recolho as pernas para a sua passagem, como se a inquilina fosse eu. Mas nada, nada o resgata do seu torpor resistente.
Então, me afasto. Retomo a vida antes da sua chegada, faço mais barulho, jogo água na cozinha, lavo os pisos e azulejos, falo sozinha, abro portas e bato todas atrás de mim, reclamo do trabalho, das vidas, dos almoços, dos homens e de como as minhas tias me tratavam na infância.
Extrapolo, transbordo, sou uma péssima companhia para qualquer um que não seja eu. Gargalho das minhas próprias piadas e procrastino o trabalho mais simples.
Esqueço a água fervendo no fogão ligado, esqueço de pagar uma conta, de comprar o leite e de me mover sem incomodar. É quando o gato, finalmente, me encara.
Logo ele que não negocia, não aceita prendas, favores, tampouco as conveniências que regam a sua sobrevivência diária, ele que não suspira pelos afagos e persianas suspensas, mas quando me vê, desinquieta e irascível, renuncia o seu altar e me acompanha até a varanda, que eu lavei para ele se deitar.
Ele toma um lugar ao meu lado, e um feixe de luz alcança suas costas flexíveis e alongadas, o
gato se sente novamente conectado à existência de todos os felinos da
sua árvore genealógica: se estica, solta um miado e encara o futuro do
outro lado do gramado. Eu também me alongo e não medito; ele é o meu espelho nesses dias. Estamos salvos desse domingo.
Todos os domingos, caminho por duas belezas, com um intervalo peculiar entre elas. A ponte é o feio, o indesejado, a passagem involuntária, onde meus pés duram pouco.
A beleza da saída é a familiar, paisagem consolidada de nuvens e raios de sol entre os prédios de concreto, pintados a cada dois anos, a depender dos condôminos.
A outra paisagem é um pouco mais bucólica, embora cercada de espaços boêmios, que mantêm suas portas ainda cerradas no horário em que costumo sustentar a atividade física mais duradoura da minha vida adulta. A verdade é que eu preferia nadar no mar, mas não aprendi e a geografia não me favoreceu na realização desse desejo.
Mais um domingo em que saio com a estratégia de tempo definida pelos caminhos conhecidos: a saída é um pouco mais lenta, a passagem deve ser mais ágil e na outra paisagem, exigirei menos dos músculos de novo. Depois, a volta. E a mesma dinâmica; ignorar a passagem, garantir que seja rápido o incômodo, o cenário que eu não procuro.
De saída, o plano manteve-se como há centenas de domingos: caminhada mais lenta, sob o céu azul de outono; rostos conhecidos e trânsito tranquilo. Depois, aumento um pouco a intensidade, para quando passar pelo entremeio, a fuga acontecer naturalmente. Mas, hoje, trabalhadores do departamento de obras da prefeitura faziam uma intervenção no quilômetro que eu sempre superei com facilidade. Então, tive que passar mais lentamente pelo cenário menos atraente do meu itinerário. Se nadasse, seria uma corrente, puxando o meu corpo e eu, tentando encontrar nela mesma uma maneira de sair sem esgotar a força dos braços e pernas. Uma aceitação da condição marítima, ao menos, por ora.
Passei, a primeira vez, pelo obstáculo, aumentei a velocidade e inverti a ordem que estabeleci há muito. Assim também deve ser para uma nadadora, que ao mergulhar no mar, aceita e aprende a inconstância das marés.
Quando, finalmente, atingi o topo do meu destino, pensei em mudar de itinerário. Outra rua, outras avenidas possíveis, também conhecidas. Mas senti, de novo, uma corrente entre as minhas pernas que me engendravam para a mesma linha marítima. Voltei. Afinal, o mergulho já tinha acontecido.
Retomo o caminho, sem a urgência das outras vezes. Aceito o que o domingo me dá. Oito trabalhadores, dois caminhões e dezenas de cones, dificultam a minha passagem, mas não inviabilizam a contemplação de uma paisagem que achava árida. Em um prédio cujas paredes estão tomadas de mofo, uma varanda com cortinas de crochê e vasos de plantas em uma prateleira delicada; ao lado, um palacete Art déco abandonado, deteriorado, ainda passível de beleza; construções pelas quais passei, por anos e, por escolha, desatenta.
Em frente a uma agência bancária, ao lado dos dois prédios, um homem pequeno, com as mãos no bolso de uma jaqueta velha, brilha na esquina. Possivelmente, a jaqueta passou por uma máquina de lavar e o material sintético foi arrebentado pelo agitador central, o incidente fez da peça uma vestimenta rara e inusitada. Faixas do tecido prateado saíam das mangas e esvoaçavam com o vento, em um efeito de plumas brilhantes.
O homem velho, calvo, de óculos de grau e fones de ouvido, olhava para a agência bancária como se fosse uma maravilha arquitetônica. Dizia coisas ininteligíveis e brilhava às oito da manhã de um domingo, na esquina que eu, até há pouco, ignorava.
Um homem, cujos braços pareciam ensaiar um voo, cujas plumas reluziam sob um sol ainda discreto, cegava a minha estupidez e declarava beleza na minha passagem. Bonita era a sua jaqueta defeituosa, brilhante a sua cabeça lisa e as penas que saíam dos seus bíceps e axilas, surpreendente era o seu olhar para coisa tão corriqueira, que é uma agência bancária. Por um minuto, eu abandonei o solo seguro e o desejo do mar e voei com ele sobre os prédios sujos, degradados, mas também bonitos, que eu não sabia como admirar. Por um minuto, eu aprendi o olhar que não sentencia.
Como se voasse com os olhos de Ícaro, caio do voo sem o susto da queda, que já era sabida, e nenhuma dor. Como se voasse com as asas de Ícaro, passo pelos caminhões, buracos, cones, homens uniformizados sem a pressa adquirida. Como se me pertencessem os planos de Ícaro, aceito a imprevisibilidade dos ventos e assumo que as correntes também constroem destinos.