terça-feira, 27 de março de 2012

E pelo olhar do outro, também se existe

  Nem sempre pode-se ou deve-se confiar no "olhar alheio" a respeito de você. Porque ao acreditar na perspectiva do outro, arrisca-se ficar restrito ao superficial (porque o outro não me conhece integral e profundamente), arrisca-se ficar aquém das expectativas alheias (porque o outro em questão pode ser muito crítico. Até mesmo por "bondade" a gente pode cobrar, em demasiado, de quem amamos) ou até, arriscamos sermos vítima de um sádico, que se satisfaz em "passar um trator" na autoestima alheia.

  Mas, vez ou outra, o olhar alheio, aquele generoso, amoroso e querido pode nos (re)lembrar quem nós somos realmente. Inseridos em um contexto tão absurdamente "desarraigado", a gente se perde e depois de tanto "representarmos" o nosso papel cotidiano, a gente se lança numa trama alucinante, sem que ao menos, saibamos quem nós somos (de verdade).  Então, como uma brisa fresca, em clima insuportavelmente abafado, vem  esse  tal olhar e nos "refresca", regenera e salva.

  Semanas atrás fui (re)visitar o meu passado. Voltei ao lugar (meu lugar de coração e alma), em que praticamente fui criada, e mesmo que, só passasse os finais de semana lá, é o lugar com o qual possuo a intimidade, conexão e identificação, como nunca terei em qualquer outro espaço. Porque um dia, a gente aprende que as raízes até se alongam, para que a gente "ganhe o mundo", para mais tarde, "puxar", para gente nunca se esquecer quem a gente, de fato, é. E os lugares servem de ponte para essa "lembrança essencial", porém as pessoas do nosso passado é que trazem consigo a nossa identidade, aquela temporariamente perdida. E andando pelas ruas que eu há muito não andava, revendo lugares, conhecendo uma ou duas construções recentes, passando pela ponte antiga eu, aos poucos, me preparava para o reencontro comigo, que só acontecia, à medida, que eu me reconhecia nos olhares de quem me viu crescer ou que cresceu comigo. Os olhares são os mesmos, como também são os mesmos os sentimentos, as palavras, o tratamento, os jeitos todos de me deixarem à vontade; tudo que eu olhava me dizia: - Entre, fique à vontade a casa é sua.
  Fui novamente apresentada a mim. E eu era toda leve, muito doce, encantadoramente frágil, deliciosamente risonha, fabulosamente descomprometida e inacreditavelmente sonhadora...o olhar do outro me presenteava com uma versão minha que eu, aos poucos, deixava para trás.

   E hoje é que a tal reflexão me veio mais clara, quando pela manhã, enquanto caminhava, encontrei com M. na rua. M. trabalhou alguns anos na minha casa, foi uma das babás, que eventualmente ajudavam a minha mãe e com a qual eu mais convivi. E talvez por isso, tenha um afeto enorme por ela. Dela eu herdei a maioria das minhas neuroses com limpeza e aprendi que rir era um ótimo exercício para a paciência, para suportar o trabalho duro e era, ainda, o remédio mais eficaz para o mau humor alheio. M. me chamou pelo diminutivo, me contou coisas prosaicas (como se nos encontrássemos sempre), me fez os mesmos elogios de antigamente e "reforçou" a minha identidade recém (re) encontrada. Se por acaso me perder de mim novamente sei bem onde "me achar"...
  Enquanto caminhava, lembrei do trecho do poema do Fernando Pessoa, que sempre amei: "A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; Mas hoje, vendo que o que sou é nada, Quero ir buscar quem fui onde ficou."
 
  Não. Não acontece sempre, mas o olhar do outro pode sim te trazer de volta à você. Experimente!

"Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor"
(Milton Nascimento)

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