domingo, 20 de maio de 2012

E agora vejo o quanto a decisão foi acertada.

  A atriz disse no programa de entrevistas, que coleciona diários. Disse que os escreve desde os 17 anos e, ainda hoje, com aproximadamente 60, ainda registra em cadernos (sim papel!) os acontecimentos do seu dia.Também tive vontade, em algum tempo, de "documentar" meu dia, minhas emoções; gostava de escrever e admirava minhas heroínas românticas, sofredoras,  que tinham como companhia somente as próprias estórias. 

  Minha mãe, certa vez, sabendo do meu mais recente desejo, me presenteou, no meu aniversário de 10 anos, com um delicadíssimo diário. Pequenino, trazia uma bela figura de uma camponesa, ilustrando sua capa. As folhas, de espessura mais grossa, tinham  a mesma imagem de fundo, numa espécie de marca d'água, só que diferente da imagem da capa, toda colorida, a camponesa era, agora, da cor das páginas do diário, de um coral bastante sutil. Vinha com um pequeno cadeado, o que conferia certa "importância" ao que lá eu registraria, a chave eu guardava no fundo de uma caixinha de bijouterias, protegendo meus segredos, sei lá de quem.

  Durante algum tempo a novidade me absorvia, quando tinha-o em minhas mãos escrevia incessantemente, quando me afastava dele, planejava o que era "digno" de nota, no meu adorado diário (cada vez que iniciava um registro escrevia "Querido diário", é provável que tenha copiado isto de alguma novela, filme ou seriado infantil. Nada criativo...mas é o que era). Com o tempo, no entanto, passei a não dar-lhe a atenção devida; comecei a retirar suas folhas, para utilizar como papel de carta, negligenciei meus segredos e passei a deixá-lo aberto ou com a chave em algum lugar muito "visível". Depois de alguns meses, retomei, agora sem a necessidade do vocativo, "Querido diário", de uma maneira menos "ensaiada", minhas anotações, mas sem nunca "ler" o que havia escrito. A questão, me parecia ser "escrever", e não "me ler". Mais tarde, o abandonei novamente. Depois de algum tempo, o guardei no fundo de uma gaveta; e, eventualmente, quando eu ia arrumá-la eu o segurava, mas não o abria, mantinha-o apenas como uma lembrança.

  Em uma das "arrumações" do meu quarto, quando já estava na adolescência, reencontrei meu "Querido diário". Menor do que eu me lembrava, com algumas manchas de "guardado", mas muito, muito sedutor. Dessa vez, eu desejava lê-lo, não me lembrava, absolutamente sobre e como, eu escrevia. Minha curiosidade me fez procurar desesperadamente a chave, dessa vez muito bem escondida, do diário. Com a chave, definitivamente perdida, a curiosidade aguçada e a arrumação interrompida; violei meu próprio passado, com a ajuda de um alicate. Já nas primeiras páginas, fiquei envergonhada com o meu olhar sobre os acontecimentos. Tudo ali era muito familiar, os eventos, as personagens, as datas, mas o tom, as cores, com as quais eu pintei cada história, me constrangia. Mesmo desconfortável, o li completamente.

  Depois de envergonhada, fiquei mesmo enfurecida. Era a minha vida, era a minha letra, mas aquele "ar drámatico", aquela personagem de novela mexicana, poderia ser eu? 
  Se pudesse, reescreveria aquele diário tão exageradamente infeliz. Meu desejo era, comprar outro idêntico e reescrever as mesmas histórias, mas sem necessidade de dor e tanto sentimentalismo. Na minha memória, da minha infância recente, eu era a Alice (a do "País das Maravilhas"), mas as minhas anotações eram dignas de Oliver Twist. Eu me frustrei com a criança "vitimizada" daquele diário, eu odiei a fragilidade, vulnerabilidade e fraqueza da figura, que em nenhuma foto, depoimento ou nenhuma outra lembrança, nunca havia se revelado.

  Joguei fora o diário, nunca mais desejei repetir tal experiência; nem a de escrever meu cotidiano, muito menos de lê-lo. Durante, muito tempo, a minha decepção com a criança que eu tinha sido, me acompanhou. Meu arrependimento de ter "invadido" minhas memórias escritas me perseguiu. Achei até que, há coisas que devem mesmo repousar no fundo de gavetas, sob a proteção de sensíveis cadeados. Ou coisas que não devem ser "documentadas", pois o risco de parecerem patéticas fora do contexto, em que foram registradas, é demasiado. E, eu cultivei o hábito, por apenas um ano, imagine se fosse coisa de mais de 40 anos? Hoje, prefiro a ausência dos meu próprios relatos.

  Mas, o tal "confronto" entre a adolescente e a criança; a imagem do que se era e o que realmente se foi, me ensinou que a "dor de hoje", fica muito longe um dia. Incompreensível até mesmo para quem chegou a experimentá-la, a gente sabe até que doeu, magoou, marcou, mas não lembra da sua intensidade. E, penso que esta é a mágica da vida: a dor de um dia, vira bobagem, tempos depois. E só quando compreendi esse processo é que pude fazer as pazes com a criança dramática e a adolescente enfurecida e curiosa. Portanto, estão perdoadas, vocês duas, voltem quando quiserem, mas só não tragam o diário, nem o alicate, por uma questão de "segurança". Afinal, nunca se sabe se superamos tudo mesmo...


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