quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Isto que chamam de vida

  Ainda lembro com riqueza de detalhes: dos cheiros, dos barulhos e até do clima quente, do suor que escorria pelos meu cabelos soltos, da tensão que pairava no lugar. Era um parto difícil no curral, meu avô seguia firme, não desistia por um só instante da vida da vaca e nem do seu bezerro. A aquela altura da vida, uns 6 ou 7 anos, já tinha assistido o nascimento de outros bichos, inclusive o de outros bezerros, que agora pastavam livres, sem se darem conta, que naquele mesmo lugar um igual a eles lutava pela vida.

  Por mais difícil que fosse - eu sabia disso pela comoção que ali se instalara, pelo número cada vez maior de gente, de conselhos e técnicas - para a vaca o parto não parecia tão doloroso, eu via nos seus olhos que ela cumpria resignada sua sina. Depois de alguma luta, o bezerro nascia, desacreditado pela demora, pelo aparente quadro grave que ele apresentava e seria batizado de Caneta, não sei quem escolheu o nome, se o avô ou um dos seus netos, a única  certeza é mesmo a de que a ideia não havia sido minha. O fim de semana acabava, eu voltaria para casa e  teria que conviver com a expectativa pela resolução do caso. Será mesmo que o bezerro havia morrido?

  No final de semana seguinte eu voltava ao curral, esperançosa em revê-la, ansiosa por boas notícias. Não demorou muito e eu vi Caneta, agarrada às tetas de uma vaca, faminta, hiperativa, pequenina, mas já uma corajosa sobrevivente, se equilibrando desajeitadamente nas três patas saudáveis e com uma pata defeituosa, resultado do parto difícil (talvez tenha sido quebrada). Pequenina eu já via a magia do tempo, enquanto Caneta crescia, meu afeto era cada vez mais devotado a ela. Jamais tive olhos para outros bezerros ou outras vacas. Caneta era, para mim, a grande rainha do curral, a mais inteligente, bonita e cheia de vida. Seja por sabedoria, seja por sobrevivência animal, a bezerra se adaptara muito bem ao cotidiano de um curral, às vezes era a última a chegar no pasto, mas superava sua dificuldade de locomoção com muita esperteza. Em meio as outras vacas, a dificuldade de Caneta passava desapercebida, era preciso alguma atenção para entender que para desempenhar qualquer atividade, a bezerra necessitava de um esforço maior. E, talvez por isso eu a amava tanto. Pela força, coragem e, principalmente, pelo empenho desmedido. 

  Mais tarde, já crescida, Caneta passaria por mais uma prova difícil. Em uma noite de chuva torrencial, o curral, que ficava muito próximo de um rio, alagou-se inteiramente. De madrugada meu avô saiu, na tentativa de salvar alguma parte do gado, a maioria não resistiu a corredeira e seguiu rio abaixo, algumas o avô resgatou e outras apareceram salvas misteriosamente no dia seguinte, no curral devastado. Caneta não havia sido salva pelo meu avô, nem apareceu pela manhã. Desolada pela tragédia, com o término do final de semana voltei para casa.

  Na semana seguinte, fui conhecer o novo curral, instalado em outra área, agora distante do rio. Nostálgica observava o diminuto rebanho, que voltava do pasto. Quando, com os olhos mais atentos, reconheci Caneta, marrom, manca, machucada e, mais uma vez, sobrevivente. - Estropiada, mas viva. Disse o avô. Feliz, corri ao seu encontro, grata por ela estar viva, grata por ela ter lutado mais uma vez para estar ali. Sobretudo, orgulhosa por ela ter correspondido sempre a fé que desde o seu nascimento eu depositara nela.

  Algum tempo depois Caneta morreu, o curral acabou, meu avô cansado, falido desistiu da criação e eu me afastei ainda mais das coisas do campo. Mas, sempre carreguei Caneta comigo. Sempre depositei minha fé naqueles que lutam, com paixão. Não importa o resultado, mas o empenho, a disposição para vida. No fundo, a vida requisita mesmo é que a gente lute e mesmo estropiados a gente siga rumo ao pasto e depois volte ao curral. Ontem a "energia" de Caneta voltou a pairar sobre mim, quando soube que alguém, mesmo machucado, voltava à luta. Silenciosa, fiquei grata, mais uma vez, por aqueles que dão tanto sentido ao que chamamos de vida...




2 comentários:

Anônimo disse...

Chorei...ainda mais por achar q vc ta falando d quem eu to pensando! Se bem q o q escreve sempre "cabe" em tanta gente, em mts tantas situacoes... A ideia e essa,ne?! Quisera eu ter essa sua sensibilidade e sutileza diante da vida... AMO VC mha canetinha!

Amanda Machado disse...

;) o melhor é que nem tenho que "compartilhar" o link...sabe tudooooo!Rs. Que bom ver as coisas seguirem, né?