quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O que aprendi com as cebolas

  Acredito profundamente nas transformações. Sempre considerei a possibilidade de nos tornarmos melhores. Por amor, por alguém e, principalmente, por nós mesmos. Mesmo que também sempre considerasse a possibilidade de alguns traços essenciais nos acompanharem e vez ou outra, nosso instinto mais arraigado vir à tona. Ainda assim, as mudanças sempre me pareceram possíveis e em alguns casos imprescindíveis. 

  Por muitos anos não suportava cebolas, até gostava do cheiro delas, mas no meu prato elas ficavam enfileiradas nas beiradas, recusadas, apartadas, rejeitadas. Durante muito tempo sofri com as inúmeras e mais variadas solicitações para que eu ao menos experimentasse, e o caso é que eu frequentemente o fazia. Não suportava, mas levava-as à boca para que a minha rejeição fosse comprovada, para quem quisesse ver. Não preciso dizer que, quando criança, o meu gosto era sumariamente desrespeitado pela maioria dos adultos. "Cebola faz bem para a saúde", "Cebola é tão gostosa", "Você está perdendo este bife acebolado". Eu tirava a cebola e comia o bife, simples assim. Quanto à saúde eu nunca acreditava muito que o fato de não comer cebolas acarretasse algum problema, já que eu me servia de uma variada e farta oferta de outros legumes e muitas verduras. Socialmente, a relação com a minha rejeição às cebolas também poderia ser pacífica, já que eu nunca requisitava que fizessem um prato especial para mim, sem cebolas. Não incomodava-me separá-las uma a uma ao redor do prato. Dependendo da cozinheira ou da receita, o trabalho era mais tranquilo ou árduo. Jamais incomodei-me em comer a refeição já fria, depois de recolher cada pedaço de cebola meticulosamente. 

  Acontece, que com passar dos anos, já mais crescida, passei a considerar que a minha tarefa de separar cebolas poderia parecer indelicada quando comia os pratos oferecidos por pessoas menos íntimas. Então, discretamente, rejeitava a maioria em um canto do prato, mas comia algumas sem, ao menos, sentir maiores incômodos. Aos poucos, deixei a fase do "não como cebolas", para o "Não como muito cebolas". A diferença parece ser sutil, mas para mim foi uma mudança importante, sentia-me mais integrada, menos "fresca" e de algum modo, vitoriosa pelo desafio que eu mesma impusera-me. Hoje, adoro cebolas, troquei os bifes que antes eu separava das cebolas, pelas cebolas, que hoje separo do bifes. Escolhi descobrir, aos poucos, o doce sabor das cebolas, surpreendi-me, inclusive, pelo paladar doce que ela proporciona. Não sei o dia exato em que parei de rejeitar as cebolas, não lembro-me porque aconteceu de maneira gradativa, sem imposições alheias e por uma necessidade própria e profunda. Sozinha, modifiquei uma peculiaridade do meu paladar. E isto, passou a alimentar minhas esperanças na possibilidade de outras transformações pessoais.

  O caso agora, não são mais as cebolas, porque este está superado. Mas, um outro aspecto da minha personalidade tem incomodado-me intensamente. Há muito, este mesmo traço incomoda outros, mas agora parece-me ser mais do que somente desagradável, tem parecido ser algo mesmo irracional.

  Aqui mesmo, ao lado da minha característica afetuosa, sensível e leal, mora uma espécie de ditador, frio, rígido, desconfiado e rancoroso. Moram dentro de mim e são vizinhos de porta, Mary Poppins e Mr. Banks*, da primeira, todos, inclusive eu, gostam muitíssimo, já o segundo, começa surpreendendo, mais tarde, desperta algum medo, até finalmente castigar todos que o contrariem. Não há exagero aqui. É bem assim que reajo, quando alguém a quem dirigi o meu afeto me decepciona: corto da lista, sem outras chances.

  Há muito, conheço esta minha peculiaridade e como no caso das cebolas, sempre imaginei que não havia razões para adaptar-me, afinal, se é assim que eu sou, quem desejasse, minimamente, minha companhia e afeto, viveria sob as minhas condições. Porém, racionalmente, entendo a injustiça e frieza que uma atitudes dessas carrega. Viver é adaptar-se as mais diferentes condições, amar requer concessões, entregar-se à vida, significa respeitar as mais diferentes formas de afeto. Não escolhe-se um tipo de amor; opta-se por amar ou não; deixar-se ser amado ou não. E, ainda que eu acredite não desejar, pareço sempre inclinada a optar pelas negativas. Cá dentro, enterro meu sentimento, à primeira decepção e sigo, como se fizesse parte da vida, despedir-se de outras tantas, sem nunca olhar para trás.

  Um dia, cansei-me de recusar as cebolas e encontrei uma maneira de fazer delas parte da minha vida e integrei-as de tal modo que passei mesmo a amá-las. Agora sinto-me verdadeiramente fatigada de sepultar pessoas e sentimentos no meu coração e assim como no caso das cebolas, talvez, gradativamente, eu abra mais espaço para Mary Poppins e só recorra ao Mr. Banks, quando for estritamente necessário. Ainda não conheço o caminho da mudança, mas já começo a procurar por ele. Se as cebolas são boas, os outros sabores também poderão ser.


Um comentário:

Ana disse...

ainda bem que vamos mudando, é sinal que evoluímos! eu também tenho esses dois dentro de mim e brigam muito um com o outro:) com o tempo acho que vou adoçando, é preciso...
ah, sempre gostei muito de cebola:)
beijos