domingo, 3 de fevereiro de 2013

E depois de tanto chorar adormeci

  Lembro das primeiras vezes que doeu, nunca esqueci aquele dia que se passou, para pouca gente relatei os fatos, os mais próximos também não puderam esquecer. Mas nunca para ninguém eu contei a dor real, por inabilidade na comunicação, por acreditar que cada vez que compartilhassse e os meus olhos enchessem-se de lágrimas tudo aconteceria de novo, não comigo, porque agora sentia-me preparada, endurecida pelos fatos, mas com o "eu-antigo", o despreparado, o novo que viria atrás. E porque no fundo, a dor da gente é só nossa mesmo, quando as dores surgem conhecemos a nossa verdadeira solidão. E doeu, doeu a dor ainda desconhecida, e por causa dela eu chorava, chorava também pelo medo do que aconteceria depois daquilo, depois de toda aquela comoção, porque não conhecia a capacidade de tantas lágrimas, de tanta resistência, que horas aquilo acabaria? E, como acabaria? E depois de tanto chorar, adormeci. Pela primeira vez eu acordaria da dor.

  Da segunda vez, eu já estava preparada, andava por caminhos que certamente não dariam os bons frutos, aos que eu estava acostumada a colher por sorte, quem confia somente na sorte, um dia perde. Não enganei-me, tentei ludibriar todos os outros, mas a mim eu não podia. Enquanto saía de casa a voz da razão já sussurrava a sentença, agarrada ao fiozinho de esperança, aquela que nunca soltava, desci a rua debaixo de chuva, sabendo que na volta possivelmente meu destino se cumpriria. 
Deram-me a prova, do outro lado da cidade a mãe acendia velas, como de costume, para a filha que não estudava e durante a prova a culpa assolapava a cabecinha torta da coitada, pela nota que viria, pelas velas e vigília desperdiçadas. E se a mãe juntasse o dinheiro das velas para comprar comida para os necessitados? Se a mãe utilizasse seu tempo nas orações em causas mais nobres, divertimento para si, quem sabe? A sentença foi estabelecida apenas uma semana depois: a estudante repetiria a série. Coisa pouca,  agora distante tantos anos, bobagem superada em pouco tempo. Mas como doeu. Humilhação, decepção, arrependimento.

  Mas, só quando esteve sozinha sofreu de verdade, na frente dos outros foi teatro, mas diante de si não havia enganação. E pensava o quanto aquilo ia mal, o quanto não tinha solução, o quanto da minha vida estava atrelada àquela situação, chorei de soluçar, de limpar as vias aéreas, de fazer doer a cabeça de ter a nítida sensação de arrebentar veias, artérias e tudo de mais vital, achei que morreria de desidratação, em algum engasgar fatal e não. Sobrevive-se a tanto e só conhecemos o tamanho da nossa força quando dela dependemos, quando entregamos a ela o nosso futuro. Chorei até cair no sono, acordei e a dor havia sido suavizada.

  E outras dores se seguiram, de perdas, de despedidas, de finais de ciclos. Sonhos perdidos, amores findos ou não correspondidos, de medo, angústias variadas, de tristeza inexplicada, de vazio solto, por antecipação e até dores atrasadas, que depois de dias, semanas ou anos passados é que se chora o acontecido. Aconteceu de novo, de novo e de novo e pensei que não aguentaria. Chorei, choramos e de tanto chorar o corpo cansa, a alma confusa se entrega e Morfeu nos pega em seu colo. E acordar depois de um desespero desses é como nascer de novo, é inicialmente desconfortável, também é um pouco dolorido, estranho, mas, no final, é bom.

  De tristeza matamos uma flor, morre-se um pouquinho sim, mas a raiz continua fincada na terra preparada para um novo brotar, vezenquando esqueço do que se passou e ensaio um novo terror, a memória da alma é curta quando a precisão aparece, mas é enorme quando dependemos dela. E, depois de um episódio destes de "quase morte", acordamos noutro dia com sensação clara de ressaca, de luto forçado, afastamos a fronha ainda úmida, o travesseiro consolador e levantamos para a vida, porque somos humanos e é disso que a humanidade se alimenta: dos que caem e levantam-se mais a frente. Como a vida de todos nós se repete, os nossos erros e desesperos não parecem ter fim às seis da tarde e já às oito do outro dia tudo é vencido. Choro, adormeço, acordo e não entendo. E há o que entender nisto? Suspeito que não. Talvez o sono no meio junto dessa força inexplicável, que diferente das lágrimas, nunca seca, é que nos mantêm de raízes aterradas, esperando pela próxima chuva. Escrevo para não esquecer, grito para compartilhar: eu só conheço mesmo a minha própria dor, mas sou solidária a qualquer outra no mundo e, digo, cessa, o sol brilhará mais à frente. Por favor, tente não esquecer disto.



2 comentários:

Ana disse...

Como se costuma dizer, o que não nos mata nos torna mais fortes.
Agora fizeste-me lembrar o dia da defesa da minha tese final de curso (tirei arqueologia), o proesor foi tão estúpido, numa escala de 20 tirei 12 sabendo bem que tinha ali um trabalho para mais mas nunca vacilei. Chorei muito depois sozinha, não por causa da nota mas por causa das coisas que ouvi, de saber o que me tinha custado na vida ir para um curso, de saber que tinha ali uma tese boa que me tinha dado muito trabalho mas que, por causa da minha frontalidade me tinha lixado com o professor (na altura ía pouco às aulas, o professor questionou-me no inicio do ano e eu disse-lhe que preferia ir para escavação, que lá aprendia mais do que na faculdade)... mas passa e ainda bem:)
beijos

Amanda Machado disse...

Sofrer injustiças é das dores mais profundas, mas é exatamente isto que dizeste, Ana: torna-nos mais fortes. Beijo