terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Porque, às vezes, é preciso aprender a ler o que ainda não foi escrito

  A professora de interpretação de textos ensinava: "leia nas entrelinhas". Era difícil entender que além do que estava claro no texto, quase sempre havia uma mensagem mais importante que não estava clara, evidente, didaticamente escrita. O caso foi que dediquei-me tanto a conhecer as tais "entrelinhas" que houve uma época, em que em "interpretação de textos" eu tornei-me imbatível, acertava tanto e em tão pouco tempo, que sentia uma emoção parecida com a de ser a "dona" do texto, "mãe" das palavras, "soberana" das orações. Ler o que não estava escrito, passou a ser minha especialidade mais cara.

  Orgulhosa, ritualizava todo meu espetáculo: arrumava minha coleção pequenina, mas sempre muito bem cuidada, de lápis, canetas, borrachas (Duas. Sempre carregava uma reserva, fosse para emprestar, fosse para sentir-me "protegida" pela presença dobrada do material escolar), colocava a folha recém "mimeografada" (na época era assim que as cópias nasciam - uma folha de estêncil, mimeógrafo e álcool.) na mesa, sentia seu cheiro fresco, observava o lilás de cada letra impressa e começava então meu trabalho minucioso de desbravar sítios que poucos conheceríam. Minha vida era chegar aonde poucos e, algumas vezes, nenhum outro chegaria: ao mundo maravilhoso "das entrelinhas".

  Ler nas entrelinhas, significava "traduzir" o que estava escrito, para o que o autor "queria dizer", a intenção dele. Nunca minha autoestima fora tão acarinhada, fingia alguma modéstia, dizia que era fácil, natural, "todos podem", mas "por dentro", na intimidade, eu bem sabia o tamanho do meu esforço. Por vezes, doíam-me a cabeça e os músculos todos do corpo, pelos exagerados momentos de concentração e contração, que a tarefa passou a exigir de mim. Ou melhor, que eu passei a exigir-me. Um dia, descobriu-se que as dores de cabeça eram em decorrência de uma servera hipermetropia. Eu, menina desbravadora de mistérios, era bem sucedida mesmo enxergando com dificuldades. Chegaram os óculos, armações grossas, rosadas (tentando alguma delicadeza), pesados, um par de trambolhos prontos para facilitar minha missão. Com a promessa de "novos olhos", mais potentes, mais precisos, mais incansáveis, tratei de traçar um objetivo: além dos textos do colégio, eu leria todos os livros de todas as bibliotecas do mundo, as pessoas, os pensamentos delas, os bichos, as plantas e qualquer outro mistério do mundo que se apresentasse sob os meu olhos.

  Meu primeiro teste, era mais um texto do livro, aquele que já dominava com facilidade, era de um escritor com o qual já tinha certa familiaridade, seu nome era Carlos e o texto era: "Moça deitada na grama". Sorte minha que gostava muito do tal do Carlos e o título já apontava para o que viria, seriam belas descobertas. Primeira identificação:  a protagonista da estória era uma moça, coisa que eu há muito eu teimava em ser; segunda alegria: a moça deitava-se na grama, como eu gostaria de fazer se tivesse um  gramado à disposição; depois, a mais específica: a tal moça deitada na grama trajava um vestido azul, cor do meu vestido favorito à época.  Pronto, estava feito. Minha interpretação seria irretocável, magistral, leitura perfeita com meus olhos perfeitos (ainda levemente estrábicos, mas com promessa de "conserto" a curto prazo). E, iniciei o ritual: canetas, lápis e borrachas em simetria sobre a mesa, folha de texto: cheirada, tocada, vista, lentamente saboreada e até escutada. Carlos me dizia e eu escrevia, eu sabia que ali havia uma parceria difícil de acreditar - eu e o escritor - por isso, não tinha outra opção, senão aceitar todas as glórias de um trabalho fabuloso. Dei uma última olhada na folha de respostas, caprichei o quanto pude e entreguei à professora. Exploradora exausta, mas feliz.

  No dia seguinte, na entrega dos trabalhos, o meu ficaria para o fim, previ os elogios e a nota "completa". Eu e Carlos tiraríamos dez, qual a surpresa? A professora chamou-me até a sua mesa e segui orgulhosa, metida, ajeitando os novos pares de olhos. Sorri, ela não sorriu de volta. Com a testa franzida, olhos da mais pura decepção a professora atirou-me a frase a seco: - O que aconteceu contigo, que  já não é mais "a mesma"? 
  Um cinco! A moça, do vestido azul, deitada despreocupada na grama verde, fizera-me tirar um inacreditável cinco. Nota que invariavalmente comemorava, em matemática sim. Química e física, mais tarde também. Mas, e o tal "ler nas entrelinhas", o que havia acontecido?

  Irritada com a moça imprudente de Carlos, com a sabotagem do meu, até então, amigo e frustrada com aquele par de olhos mentirosos eu sentei na minha mesa, agora bagunçada, desordenada, "desritualizada". Carlos, a moça, outrora simpática, e os meu olhos tão promissores trairam-me. Recusei-me a usar os óculos por alguns dias, neguei a amizade de Carlos por algumas semanas e a moça eu deixei-a presa na sala da quarta série "A" por muito tempo. Mais tarde, voltei a minha carreira bem sucedida de "leitora de entrelinhas", mas jamais com a mesma segurança. Humilde, passei a demorar mais tempo e, vez ou outra, errar uma ou duas questões. 

  O que aprendi mesmo na aula de "leitura de entrelinhas", é que quanto mais envolvidos com o objeto da nossa análise, menos somos capazes de enxergá-lo na sua real completude. Meu amor por Carlos, pela grama, pela moça do vestido azul deitada nela e a minha crença despropositada nos meus olhos, fizeram-me ver o que não tinha e deixar de enxergar o que realmente era. Por isso tantas vezes é fácil analisar, criticar e julgar a vida alheia. Por falta de envolvimento e emoção os olhos são muito mais racionais, no entanto, basta termos alma e coração envolvidos com a situação e somos todos (sem qualquer exceção) tolos e cegos. Não significa que os olhos amorosos enganem, eles só transformam uma notícia de jornal em poesia, um "não" em "talvez", um "eu não te amo", em um "nosso amor é impossível". O coração inventa "entrelinhas" e traz confusão aos nossos julgamentos, entender nossa cegueira quando o assunto nos é próximo, é que é a visão mais apurada. Da hipermetropia de criança fui curada, já para o estrabismo discreto e o julgamento afetado pela emoção é que suspeito não ter remédio ou tratamento possíveis.


4 comentários:

Carla Machado disse...

Às vezes,só quem vê as entrelinhas somos nós mesmos... elas existem só para nós, para satisfazer um desejo nosso... por outtro lado: "pra quem sabe ler, um risco é Francisco"! Beijo, irmã!

Amanda Machado disse...

"Os dois lados da moeda" sempre!Beijo

Ana disse...

Concordo contigo, é necessário ler nas entrelinhas mas com alguma distância, para não se tornar uma obsessão...
somos parecidas em muita coisa:)

Amanda Machado disse...

;)