quinta-feira, 21 de março de 2013

(Des)conhecidos

  O dia parecia-me péssimo, sabe destes dias de alma nublada e que ainda a faca com manteiga cai no chão, a geléia na roupa recém trocada para sair, voltam-te o troco errado, entende mal a informação importante, o pneu fura, atrasa-se, o serviço do qual precisava paralisa e uma chuvinha fina, no dia cinzento só faz retratar o seu estado interno? Pois então, era bem isto. Preocupação. Medo. Vontade de coragem, mas só covardia a rodear. Dia que não era para sair de casa, de debaixo das cobertas, mais longe, vontade mesmo de colo de mãe. Crescida, ocupada, sem tempo para medo, só deixo o dia "errado" seguir. E ele segue sufocando-me. 

  Olho os estudantes no Campus, frio congelante, vento arrastando folhas, mas eles falam, como falam essas criaturas! Se aglomeram nas cantinas, nos pontos de ônibus, como pequenas massas de jovens intelectuais, em seus óculos de armações grandes da moda,  seus moletons coloridos, com suas cópias recém tiradas nas mãos, suas bolsas descuidadas, abertas. Escolho um ponto de ônibus, a precoce anciã, disputa um lugar com os universitários no ponto, queria estar só. Ou talvez quisesse não sentir-me tão só. Não entendo-me. Os olhos passeiam entre aquelas felizes massas, escuto os rumores, mas não fixo-me em nada, só distração até eu estar "salva" dentro do ônibus, mais tarde, dentro de casa. Por agora, só dentro de mim, o que não me parece nada aconchegante.

  E em meio a massa, alguém dissonante: não tem mais de vinte anos, é pequena, magra, cabelos longos, lisos e loiros presos em um rabo baixo, o par de tênis é ridiculamente pequeno, bolsa nas mãos e um rosto pavorosamente vermelho, lacrimoso, inundado. Ela está a poucos metros de mim e eu não escuto nada, choro sem som, mas com muita imagem. O choro é público e eu me comovo, queria sentar ali e chorar com ela, mas tenho dez anos mais, trinta centímetros mais e uma reserva antiga com o sentimento alheio. Finjo não perceber que chora. É o meu gesto com ela.

   Mas, enquanto eu finjo ignorância, alguém toma uma atitude mais invasiva. Um senhor, cerca de setenta anos, sentado ao lado da pequena chorona a interroga, brinca, faz graça com a desgraça da desconhecida, em seguida diz que ninguém merece um choro assim. - Se for namorado que terminou, ruim para ele que te perde! Pergunta se ela chora por saudades de casa e diz que ele mesmo chorou muito a falta da sua quando aos 14 anos teve que abandoná-la. Eu escuto as investidas do invasor e torço para que o ônibus logo chegue, para salvar a pequena, para salvar a mim. Mas ele não chega e o homem também não se contém. Continua com o que, a princípio, parecia-me provocação. Mas, ele interroga-a de maneira gentil, sorri e tenta mesmo consolá-la; não há dúvidas, o velho compadeceu-se da dor da menina. 

  Aos poucos, a carinha vermelha transforma-se em rosada, as lágrimas cessam, as mãozinhas nervosas já não vão ao rosto, a menina parece não ter mais tanta pressa e até sorri para o seu consolador. E ambos, a sofrida menina e o homem, héroi-comum, entram em uma sintonia tão íntima, tão fabulosa, tão delicada que eu, "respeitadora do espaço alheio", sinto-me egoísta, solitária e pobre. 

  A menina não teve medo de tornar seu sofrimento público a desconhecidos, abriu-se completa, desolada no ponto de ônibus, mas corajosa; o desconhecido, desrespeitando todas as "regras sociais", não temeu tocar na dor alheia, interferir na intimidade de uma estranha. E ambos se conectaram de uma forma sublime, invejável. Como todas as pessoas deveriam ser, ou não? Como eu gostaria de ter feito aquela tarde, mas por pudor, medo e desconfiança deixei passar...

  O ônibus veio e eu subi. A menina e o velho, tiveram a sorte de tomarem mais do que um transporte com destino certo. Eu, sozinha com a minha dor, paguei a passagem, sentei-me e pensei que não precisava ser assim ou, pelo menos, continuar sendo assim. Para abrir a alma inteira e compartilhar a sua dor requer mais coragem do que enfrentá-la sozinha; invadir o sentimento alheio, sem restrições, pode ser bem mais gentil, do que fingir ignorá-lo. E em um dia cinza de terça-feira infeliz, em um ponto de ônibus ordinário, eu vi mais humanidade e afeto entre estranhos, do que tenho visto por aí entre antigos conhecidos. E, no fim, acho que deu-se um bom dia, ainda que ruim.



4 comentários:

Anônimo disse...

E eu aqui, sentando defronte a uma janela que retrata um crepúsculo cinza, que seu texto me fez ver colorido... talvez pelas lágrimas que turvaram o olhar, talvez pelo acalento que suas palavras me trouxeram!

Amanda Machado disse...

Talvez mesmo pelas cores que carrega aí dentro...

Ana disse...

É verdade, eu gostava de me abrir mais mas sou do tipo que sofre em silêncio, resolvo meus males comigo mesma. As pessoas habituaram-se a ver o meu lado forte e sempre e eu não gosto que vejam o lado frágil que também tenho - muito até.Talvez com m desconhecido seja mais fácil por sabermos que o não voltamos a ver...

Amanda Machado disse...

Acostumamos a carregar tudo sozinhos, quando dividir seria menos pesado...às vezes, um estranho pode fazer muito mais por nós do que um íntimo.