quarta-feira, 27 de março de 2013

De uma lição

  Era uma sensação estranha, vontade de não desagradar, nunca errar perto, diante ou enquanto ela estivesse ali. Sabe quando nos sentimos ameaçados e involuntariamente prendemos a respiração, como se só isso fosse capaz de ocultar a nossa presença? Passava horas respirando assim. Era insegurança constante, vontade de não voltar, mas sempre voltava (que outra saída tinha ela?); desconforto, desconfiança. 

  Um dia viu-se livre da presença diária (depois de um ano) e quando relaxou, quando a alma infantil viu-se fora do cativeiro, quando começava a confiar novamente e achava que podia de novo ser solta,  veio ela feroz, vingativa, ensinar a menina que a presença até poderia passar, mas a sensação não (- Os anos passam, eu permaneço!). Era o medo, um dos primeiros e, provavelmente, um dos mais recorrentes na vida da menina, a lição escolhida pela professora para a sua educação. E a figura ameaçadora duraria, frequentaria seus piores pesadelos durante anos, visitaria todas as suas idades, a voz, a imagem, a dimensão corpórea tudo seria armazenado detalhadamente na sua elástica memória; lição jamais esquecida.

  A amarga mulher, cujos gestos afetuosos nunca foram conhecidos, professora de crianças, que tinha no medo o seu mecanismo de controle, vivia em um inferno pessoal. Diziam que a vida da senhora era lamentável; sofria abusos terríveis do marido alcoólatra, sustentava os filhos sozinha; em casa ela era a vítima, na escola ela era o algoz. Ela fazia, em proporções mais destacadas, o que fazemos muito sem perceber. Repetia uma relação infeliz, mas tomando o papel inverso. Empregados que tratam seus empregados, como seus patrões os tratam. Mães que tratam seus filhos, como são tratadas pelos maridos. Irmãos mais velhos que repetem o comportamento de seus pais, com seus irmãos mais novos. Uma espécie de "corrente do mal" é estabelecida e nem ao menos percebemos.

  A vida infeliz da mulher serviu, durante anos, como justificativa para seus abusos. Como se a infelicidade de casa fosse a única causa para seu comportamento. Mas será mesmo que ela só repetia a relação abusiva de casa? Ou foi a covarde que encontrou uma relação em que se tornou a vítima? Ambos são igualmente possíveis. Mas no segundo caso, certas religiões denominam de Karma - uma espécie de "castigo" que a vida nos dá por algum erro que cometemos (algo assim).

  À tarde, já na rua, encontro o homem feito, amigo antigo, que não vejo há muito, obsessivo com as horas no pulso, ele teme atrasar sua chegada em casa, não sei se ele tem consciência, mas seu medo não é do tempo. Teme mesmo é despertar o rancor da sua mulher. Manipuladora, ela finge não controlá-lo, mas ele só faz exatamente o que ela quer. E se me lembro bem, foi assim que ele agiu a vida toda, até conhecê-la. Será ela o seu Karma?

  Enfim, as duas estórias me fazem pensar nas relações que construímos, no afeto que doamos, naquele que negamos, na maneira como passamos pela vida de cada um, naquilo tudo que deixamos, nas marcas, lembranças, traumas e no mistério do tal karma. Não sei se existe, minha fé corre mais solta do que qualquer definição religiosa possa abarcar, mas de qualquer forma, heranças benéficas nunca devem ser negadas. Acho que o clichê antigo: "Trate os outros como gostaria de ser tratado" é ensinamento profundo, daqueles que deveríamos sempre carregar conosco. O fato é que a vida ensina sempre, mesmo aquilo que nos negamos a conhecer. E, tanto melhor, se for de maneira mais sutil, com mais gentileza. 

  A menina perdoou a triste mestre, a professora é que nunca se perdoou. O amigo, ou acostumou-se com a situação ou um dia ainda se perceberá infeliz; a vida segue com os seus ensinamentos. Nós, às vezes maus, outras, bons alunos, fazemos das lições o que podemos, o que sabemos ou queremos.
 



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