sexta-feira, 10 de maio de 2013

É que não é só o que parece

  São quatro anos (quase exatos), só hoje me dei conta do tempo que a vida ganhou outro sentido, melhor,
outros. Para qualquer um, mesmo para os que me conhecem mais intimamente, desconfio que a mudança não seja algo propriamente perceptível, mas aqui as coisas modificaram-se tanto, que chego a imaginar quem eu era antes desta jornada. Há os que modificam-se pela religião, fé; por uma grande dor, pelas palavras que ouviu, leu ou desejou; necessidade de realização ou, naturalmente, efeito do próprio tempo. Desconfio que eu mesma tenha, em algum grau, sido transformada por cada um desses mesmos motivos, mas de todas as pequenas revoluções que se instalaram em mim, a maior delas, a que mais resisti e hoje sou imensamente grata, foi a decisão de trazer um ato tão natural e antigo para a minha rotina diária, andar. Foi no tempo em que eu não compreendia nada, o sentido das coisas pareciam me escapar mais e mais, que eu decidi empenhar-me em compreender, seja lá o que fosse, encontrar o que eu nem sabia se existia e que se existisse eu não estava certa de que o reconheceria.

  Levantei mais cedo da cama, em um dia de maio já frio, calcei o par de tênis nunca usado, comprado há mais de um ano, e andei. E no dia seguinte e no outro e nas semanas seguintes, meses, ano, anos;os outros compromissos  passaram a ser antes ou depois da minha jornada calculada. Dia frio, muito frio, dia quente, quentíssimo, chuva fina, antes ou depois da chuva, dois pares de tênis depois, calças desbotadas, camisas inúmeras, saio uma e volto outra. A caminhante que saiu nunca mais retorna ao velho apartamento, volta sempre outra, nova, modificada. Milhares de músicas depois, rostos desconhecidos que se tornavam familiares e, mais tarde, desapareciam e davam lugar a outros novos; cumprimentos trocados, sorrisos doados e recebidos, a meninha de mãos dadas com a mãe que vi crescer, as caras adolescentes de sono, cabelos bagunçados, os atrasados para o trabalho,  os cachorros levados para o passeio matinal, os anônimos corredores, os bikers, o porteiro do prédio, que não trabalha mais lá, os operários da companhia de trânsito, de asfalto, água e luz, todos passaram, só eu passo todos os dias. Vivi a incrível experiência de descobrir que não era invisível, mesmo sob o boné, acessório que integrei ao uniforme, vez ou outra, além do cumprimento uma pergunta, alguém pedindo ajuda, direção, dinheiro e até uma mão para atravessar a rua, os idosos me parabenizam pela ginástica diária (talvez me julguem previdente, guardando saúde para o futuro, eles não sabem...). O senhor com o cão que diz a mim um sonoro "bom dia, menina!", nada rejuveneceria mais minha alma balzaquiana, dou-lhe dicas de alongamento e sigo a rua.

  A rua é uma das avenidas mais movimentadas da cidade, em dias úteis, nos outros é quase deserta e eu posso contemplar a beleza que é essa transformação. Já vi casas antigas darem lugar a luxuosos prédios, vi terrenos serem preparados para novas construções e acompanhei cada fileira de tijolo ser cuidadosamente colocada, mais tarde, vi os condomínios prontos com os seus felizes moradores. Já vi árvores crescerem, outras serem podadas, algumas arrancadas. Já furei sinais de trânsito, hoje tenho mais e mais cuidado, acompanho os imprudentes motoristas com meu olhar mortífero e sigo meu caminho, o trajeto quase nunca sofre alteração, só mesmo uma grande intervenção no asfalto me faz mudar o lado do percurso. Encontrei gente conhecida que não via há muito tempo, das maiores vantagens de ser exploradora da própria cidade, uma babá querida, que demonstrou afeto verdadeiro para a menina que cuidou, ex-vizinhos, ex-colegas de escola, ex-professores, colegas de trabalho e hoje, reencontrei a primeira babá, cujas remotas lembranças são tão agradáveis e doces quanto o sorriso tímido dela, vimo-nos durantes três dias diferentes, mas eu não tinha certeza de ser reconhecida e acho que ela teve dúvidas também, só hoje a certeza em um "olá" contente. Há quatro anos eu sou dona dessa avenida, não tenho as chaves da cidade, duvido que um dia teria qualquer reconhecimento oficial, mas sou verdadeiramente respeitada pelos olhos de desconhecidos que se tornaram familiares. Semana passada a mulher com o cachorrinho a quem só cumprimentava com um costumeiro "bom dia, como vai?", deu-me seus cumprimentos admirados pela minha persistência. Só então, eu percebi o quanto já se passou e eu continuo passando.

  Não é por esporte, não é desejo de boa forma e saúde (se vierem ótimo), ando sempre e cada vez mais para frente, mas ter visto as duas babás, especialmente esta de hoje, que me fez perceber que eu tenho feito é o caminho para o passado. Não importa quantos metros eu caminhe a frente, volto mesmo para fazer as pazes com o passado. Então, como explicar a alguém o que eu sinto quando mandam-me comprar uma esteira  ou tirar um dia de descanso? Estranho se eu disser que isto é parte importante da minha vida, mas é isto que é e sou grata por cada passo dado e os outros tantos que virão.




4 comentários:

Anônimo disse...

Está aí a inspiração que eu precisava para também começar... A andar e descobrir essa cidade, que agora, também é minha =)

Lindo texto.
E continue a andar ^^

Beijos!

Amanda Machado disse...

Obrigada Zi! Se te valeu um estímulo, já está de bom tamanho...beijo

Ana disse...

É uma terapia enorme, eu sempre gostei de andar mas, há seis anos e meio - idade da minha cachorra - que o faço todos os dias e um dia por semana dou um passeio grande. Como dizes, uma pessoa vem renovada, muitas vezes estou chateada, pego nas cadelas, dou uma grande caminhada e quando venho já passou, estou mais calma, mais ponderada, dá para pensar em muita coisa, dá para pensar em tudo!

Amanda Machado disse...

E não é? Também tenho encontrado tudo que uma alma precisa: paz, gente, mudanças...só me falta, ainda, o cachorro...