quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A foto da primeira carta

  O rádio da cozinha era ligado assim que a mãe despertava; do quarto, da cama, eu ouvia de longe todos os dias a mesma música de abertura de um programa que nos fez companhia, no mínimo, por uma década. Fingia dormir, porque não gostava de levantar cedo, porque não me animava muito seguir para a escola. Com o som do rádio ao fundo, escovava os dentes, tomava banho, vestia roupa e sem dizer uma palavra tomava o café. A mãe ficava, o rádio também e, quase dormindo, eu ia para escola.

  Mais tarde, antes da mãe, a voz do rádio também me recebia. Depois de muitos anos, quando o silêncio se demora, ainda sinto falta de algo, de algum som familiar e logo lembro do rádio. É provável que a mãe sinta mais essa ausência do que eu. Dos programas que acompanhava durante a semana tinha um favorito, não lembro o nome, mas era uma espécie de classificados amorosos. Começava no final da tarde, início de noite. O ouvinte enviava uma carta ao programa, enumerava suas características, na maioria das cartas, uma coleção de predicados muito positivos e delimitava o perfil procurado. As mulheres procuravam, à época, "homens trabalhadores, honestos e com estabilidade financeira", elas tinham uma faixa etária pretendida mais ampla e quase nunca estabeleciam um padrão estético específico, para o anúncio podiam usar, ainda, um pseudônimo, que frequentemente variava em uma repetida combinação de  "A Apaixonada de..."; "A romântica de..."; "A solitária de...". Os homens eram menos genéricos, eram bem mais específicos, "mulher sem filhos e não-fumante", por exemplo; a maioria também não tinha pudor em descrever o seu biotipo ideal e delimitar uma faixa etária bem menos elástica. 

  Analisava cada anúncio, combinava possíveis pares, apontava os mais criativos, os perfis que atrairíam mais atenção. No caso das mulheres, julgava que os mais românticos e sensíveis teriam maior número de interessadas; no caso dos homens, as mulheres que fossem mais pragmáticas e específicas, poderiam agradar ao público masculino. Eventualmente, o locutor anunciava algum casamento, de algum casal formado com a mediação do programa. Os happy ends deviam dar alguma esperança aos solitários da cidade que anunciavam seus corações no programa de rádio. Mas de todos os anúncios, o que eu mais odiava era aquele, que ao fim da descrição detalhada do ouvinte e ao término do perfil pretendido traçado, trazia a observação infeliz do "Peço foto na primeira carta". Para essas cartas, torcia não haver sequer um ouvinte interessado.

  Entendia, naquela época, que alguma afinidade de gostos era possível estabelecer maiores chances dos relacionamentos se efetuarem de maneira mais harmoniosa, mas o grau de exigência, delimitação e, principalmente,  uma foto, já na primeira carta, poderia ceifar a possibilidade de um afeto nascer, em função de um detalhe, algo de menor importância. 

  Hoje, no corredor do prédio, enquanto esperava o elevador, uma mulher conversava com alguém ao celular e pedia para desmarcar um encontro em que seria apresentada a alguém pela amiga. E pedia, porque tinha visto o perfil do pretendente em uma rede social e achado o rapaz "baixinho". Lembrei do rádio ligado, dos anúncios e de cada perfil para o qual torci, na infância. Senti pela moça do celular o mesmo que sentia por cada ouvinte que pedia uma foto na primeira carta, a impossibilidade de ver além das suas próprias idealizações. A indisponibilidade para construir uma relação que ultrapasse o universo do imaginário. Pessoas reais surpreendem, mais do que desiludem. Pessoas reais ensinam novos gostos, possibilitam a nossa entrada ao mundo da descoberta, onde existem  músicas, filmes, valores, experiências diferentes das nossas, mas talvez tão boas quanto aquelas a que nos apegamos.

  Pedir foto na primeira carta, deixava claro as intenções do ouvinte: ele não queria amor; queria alguém pronto, perfeito, dentro dos limites de um padrão estético, para, somente a partir daí, caber nos seus sonhos. O programa de rádio acabou, a prática parece jurássica, mas as pessoas ainda exigem "foto na primeira carta", como alguém que faz compra pela internet. Pedir foto na primeira carta aborta afetos e limita o que deveria ser ilimitado. A foto da primeira carta assassina a possibilidade de uma sintonia bem mais importante do que costumamos imaginar. Bem, é o que eu acho.



2 comentários:

Anônimo disse...

Mais um texto ótimo...

Concordo com você. A sintonia não se dá por beleza física. Infelizmente, vivemos em um mundo de aparências...

Amanda Machado disse...

;)