quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Deixe a criança

   A filha de uma amiga ganhou uma irmã. Ela tem cinco anos e experimenta, pela primeira vez, a frustração de não ser única. Não tem primos, não tinha irmãos. Primeira criança de uma família pequeníssima, com um histórico recente de perdas sucessivas. A vida tem valor em qualquer situação, mas quando convivemos com a morte de maneira muito próxima, esse valor parece ainda mais ampliado. A vida perecível, limitada, inegociável e finita recomeça em outro ser, com seu olhar novo sobre cada coisa, sorriso imaculado, passado inexistente, sem perdas sentidas, sem traumas sofridos, folha em branco à espera da escrita. O nascimento de um novo membro na família é a possibilidade real de se fazer de outro modo, de escrever um novo capítulo e, por outro lado, de perpetuar histórias antigas que nos são tão caras. Haverá alguém que nos contará.

  Ela é espertíssima, sociável e bastante geniosa. Nascida em um ambiente completamente favorável a satisfação das suas vontades, desde as afetivas até as materiais; ela agora não é única. Em meio a alegria do nascimento de uma irmã, desejo alimentado por muitos filhos únicos, a pequena já nos primeiros dias de vida de sua irmãzinha fez um desabafo doído, cheio da dramaticidade que o caso agora tem para ela: "Eu queria era nascer de novo.". E, eu que nunca quis, surpreendo-me quando percebo que não só ela, mas tanta gente compartilha da mesma vontade.

  Desejo de voltar à infância, saudade de um tempo idealizado, cristalizado na memória como tempo em que tudo era fácil, leve e bom. Tenho uma amiga que insiste, há anos, na máxima "antigamente é que era bom", ela acha que era mais feliz, tinha menos preocupações, a vida era melhor. Não acho. Fui sim uma criança feliz, mas fui triste também. Não tinha contas a pagar, não tinha os compromissos profissionais e acadêmicos, mas tinha angústias e preocupações próprias da idade. Tinha medo do escuro, pavor da escola, tive medo de ficar órfã, medo de tirar notas baixas, de gaguejar a leitura em público. Hoje é bobagem, mas na época não era. 

  E na ilusão de um tempo remoto muito melhor que o atual, hoje multiplicam-se postagens nas redes sociais, com perfis que exibem as fotos antigas da infância, em uma referência ao dia 12 de outubro, frases como: "saudade do tempo que eu pedia o troco em bala", "saudade em que a minha única preocupação era o desenho tal...". Foi García Marquez quem atentou,  acho que em seu fabuloso romance,  "Amor nos tempos de cólera", que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas, que só por isso podemos suportar o passado. E isto nos protege, isto nos salva das nossas dores passadas, mas, por outro lado, também nos engana muito, nos fazendo acreditar que houve um momento, estágio, fase em que éramos verdadeiramente e completamente felizes. Não houve tempo assim, exceto naquele imaginado.

  Quase véspera de mais um dia das crianças e eu não querendo voltar à infância alguma, insatisfação com o presente e eu não querendo nascer de novo. Vez ou outra, quando tenho saudades de algum aspecto da minha infância; não lamento, satisfaço. Saio desagasalhada, por birra; saio na chuva sem medo; recolho moedas deixadas no sofá de casa; assisto desenhos em um dia de semana; invento doença para não cumprir um compromisso. E, logo, volto a ser adulta. Não dói, não fere, não sufoca. Entro e saio das fases sem tanta idealização ou realismo.

  Eu compreendo uma menina de cinco anos desejar "nascer de novo" para atrair as atenções que a irmã agora recebe, mas não compreendo um adulto desejar o mesmo.

  Minha criança não tem facebook, não conhece palavras como: hiperatividade, bipolaridade, ansiedade. Minha criança corre solta no quintal da avó, pisa em arame farpado enferrujado, chora com medo de perder o pé e suspira de alívio, acreditando que o boletim escondido no fundo da mochila, poderá ser resgatado agora, com o pé enfaixado, que a aliviará dos castigos e sermões. Minha criança permanece salva de um mundo intranquilo, no lugar onde a deixei, no paraíso que eu construí para ela.

   Não queria nascer de novo não. Não agora. Talvez, no final da vida, em vez de morrer, eu nasça. Este é o meu desejo infantil, de adulta. Não faz mal sonhar como criança vezenquando.Não faz não.



4 comentários:

Malu Machado disse...

"Minha criança não tem facebook, não conhece palavras como: hiperatividade, bipolaridade, ansiedade. Minha criança corre solta no quintal da avó, pisa em arame farpado enferrujado, chora com medo de perder o pé e suspira de alívio, acreditando que o boletim escondido no fundo da mochila, poderá ser resgatado agora, com o pé enfaixado, que a aliviará dos castigos e sermões." Muito bom esse texto. Me identifiquei em cada palavra sua. Essas que reproduzi em especial. Estou com uma fan page no meu blog e gostaria de reproduzir seu texto lá, com link para cá. Posso? A ideia é divulgar blogs que eu gosto e com os quais me identifico.

Amanda Machado disse...

Que bom que gostou, Malu... minha criança ainda dá pulos com elogios...a adulta agradece.
Claro que pode reproduzir sim, o prazer vai ser meu. Muito obrigada. Beijão

Malu Machado disse...

Está lá Amanda. Me adiciona no face. Não estou te encontrando Amanda M ! rss
Estou como Malu Machado, ok? Abs

Ana disse...

Tenho algumas boas recordações da infância mas também não queria lá voltar. Demoramos tanto tempo a crescer, muitas vezes com trinta anos ainda não nos conhecemos bem, ainda não sabemos o nosso caminho. Eu não vivo desses saudosismos, às vezes atacam-me mas logo me passam.
E a rapariga vai adorar ter companhia, irmãos são o nosso complemento.