segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

E a vida é mais "falar o dispensável"

  Todas as vezes que eu entrava no ônibus, quando criança, eu lia, em uma plaquinha estrategicamente colocada em frente às escadas de acesso: "Fale ao motorista somente o indispensável". Bastava eu ler para ser imediatamente invadida por uma enxurrada de dúvidas a respeito do que seria "indispensável" dizer ao motorista. Um bom dia, podia? Perguntar se ia bem, podia? Agradecer, antes de descer na parada escolhida, podia ou era dispensável? Quem estabelecia o que era indispensável ou não, na relação entre passageiros e motorista? A empresa? Quem na empresa? Por acaso a tal pessoa conhecia a dinâmica imprevisível de todos os dias que permeiam uma viagem de ônibus?

  Embora durante muitos anos eu tenha feito longas viagens de ônibus por um mesmo percurso e tenha dividido muitas horas das minhas semanas na companhia dos mesmos desconhecidos, a minha relação com o meio de transporte nunca foi de grande intimidade. Por escolha ou mesmo por um traço da minha personalidade eu não permiti. Gostava do ambiente, aproveitava para colocar em dia a leitura, rever trabalhos e muito para observar cada personagem que frequentava o ônibus. Havia algum afeto, da minha parte, mas não intimidade. E, talvez por isso, jamais tenha falado ao motorista o dispensável.

  Por outro lado, vi mulheres se encantando, flertando e até se casando com o motorista. Vi homens estabelecendo amizades profundas, com o motorista, depois de um convite para o jogo de futebol, uma cerveja, uma visita. Assisti senhoras idosas recebendo mais atenção e afeto do motorista do que das suas próprias famílias. Isso tudo, porque ignoraram o aviso e não se limitaram ao indispensável.

  A dúvida sobre o que é ou não "indispensável ao motorista" não me assombra, porque sou do tipo que fala o mínimo possível com desconhecidos ou pouco íntimos. Mas vez ou outra, a questão do que eu devo ou não falar me perturba, porque acho desleal não revelar aos íntimos questões que, de alguma forma, também são suas. Me calo ou falo? E se ele entender de outro jeito? E se não entender nada? É mesmo necessário que um incômodo meu seja partilhado? E se o que eu disser não mudar nada em seu comportamento ou opinião e, o pior, se mudar somente nossa relação? Erramos quando julgamos que muito do que dizemos precisava ser ouvido, quando, na maioria das vezes, dizemos porque precisamos falar. A necessidade é muito mais nossa do que deles. Há algum egoísmo nisto sim, mas as relações não são somente generosidade. 

  É preciso aprender a conviver também com as palavras vazias, jogadas ao vento, sem tanto significado, senão somente o de expulsarmos elas de dentro de nós. Não é para ferir o outro, para magoá-lo ou surpreendê-lo, talvez seja só para que a palavra não dita não sufoque, não contamine, não mate um sentimento.

  As palavras definitivamente nos superam, nos ultrapassam, nos empurram a um destino, que muitas vezes, não tomaríamos voluntariamente. As palavras existem antes e depois de nós. Nós só somos um meio para existência delas. Eu escolhi não dizer e disse, porque a vida não obedece placas, a vida é mesmo feita do dispensável.
  Quem inventou a plaquinha do motorista não conhece a imprevisível beleza que é viver. Em caso de dúvida, fale. Esta é a vida, onde o indispensável sempre cabe.




Um comentário:

Ana disse...

por vezes num silêncio diz-se mais que numa conversa, eu sou como tu, falo o indispensável:)