domingo, 23 de fevereiro de 2014

As pessoas são as histórias que elas (não) contam

  Não. Não existe uma definição que contemple absolutamente o que somos, que explique do que somos feitos, que forneça a informação acertada e definitiva sobre como chegamos nisto; mas existem caminhos que escolhemos ou nos escolhem, que inevitavelmente nos levam a algumas direções. A história de cada um, é, quase sempre, um retrato mais aproximado do personagem que escolhemos encenar.

   Gosto de histórias e estórias, na mesma medida, reais ou fictícias, nunca julguei que uma fosse mais importante do que outra, ambas são histórias e isto basta. Nada é mais fascinante numa pessoa do que as suas histórias e mais,  a história que ela gosta de contar e a que prefere deixar intocada em uma gaveta qualquer, isso diz muito a respeito do que ela é e, frequentemente, nem ela mesma sabe. 

  Conheço gente, que me conta a mesmíssima história, dezenas de vezes durante anos, não interrompo, ouço cada uma das vezes, como inédita e, vez ou outra, me surpreendo com algum detalhe desconhecido, nunca sei se não havia sido mencionado antes ou eu é que não tinha me atentado das outras vezes. Não me importa. É a oportunidade da descoberta do novo no antigo, do inédito no repetido. Conheço gente, que mesmo depois de décadas de convivência, em um dia qualquer, acabo por descobrir um capítulo escondido, ignorado, nunca lido. Gente que optou por silenciar, durante anos, um trecho importante de algo que ela também é feita.

  Há um homem muito distinto no meu bairro, que conta sempre as mesmas histórias sobre seus antigos trabalhos, há anos. As narrativas quase sempre giram em torno de decisões éticas e morais; de escolhas profissionais que modificaram sua trajetória pessoal; da sua personalidade inserida em cada processo, mesmo nos mais burocráticos. Por outro lado, o tal homem, quase nunca se lembra de contar sobre seu passado mais remoto: família, terra natal, primeiras lembranças; é um personagem de passado próximo. E acho que isso diz muito sobre quem ele é, aos meus olhos: alguém que limita o "olhar para trás", que valoriza as experiências como condição para o aprendizado, mas que prefere não lamentar os aspectos mais dolorosos da sua trajetória. Gosto, igualmente, do que ele conta em excesso e daquilo que seus silêncios teimam, mas não conseguem esconder por tanto tempo.

  De um outro lado, uma mulher privilegia seu passado mais primitivo e, quase sempre, abre mão, deixa mudo e esquecido, tudo aquilo de mais próximo. A mulher é um emaranhado de histórias velhíssimas, com as quais ainda chora, sofre e revive, há anos. Sua lembrança emotiva é surpreendente, com uma abundância de detalhes impressionante. É mulher de passado guardado, revirado e ajeitado diariamente, em um exercício incansável de tirar e organizar, novamente, suas lembranças nas prateleiras devidas. É uma trabalhadora incansável da nostalgia. Admiro seu poder de superar, obstinadamente, cada lembrança ruim, com tanta frequência.

  Gosto das histórias que me contam, das que leio, daquelas varridas para debaixo de um tapete pesado, no sótão, das que trazem sorrisos ou lágrimas para quem conta ou ouve; gosto de histórias de gente, bicho, objeto; prolixas ou sucintas, poéticas ou matemáticas. Amo ou odeio, espero ou supero, repito ou descarto, identifico-me ou rejeito histórias, todos os dias. As histórias são o que de mais caro e profundo, os homens têm. As histórias não acabam, não morrem, não podem ser esquecidas, diferente dos homens.

  A história que amamos, criamos, projetamos ou aquela que esquecemos, editamos e escondemos é o que de mais essencial alguém é. Porque as pessoas são as histórias que elas gostam de contar e também as que preferem esquecer.




2 comentários:

Ana disse...

concordo, eu adoro histórias e é por isso que adoro ler e adoro conversar e ouvir.

Amanda Machado disse...

Exatamente Ana! Ler, ouvir, observar histórias...