segunda-feira, 28 de abril de 2014

Da arte de fabricar espantalhos

  São só bonecos de palha. Corpos de palha, vestidos de gente, só. Sem coração, sem movimentos, sem habitantes. Bonecos nascidos para parecerem gente. Gente que ameaça, afasta, protege uma plantação. Os espantalhos são feitos disto: de uma mentira que intimida. Que resguarda aquilo que não deseja visitas. Um chapéu, uma calça de gente, um moletom esgarçado e o engodo é fabricado. Só se aproxima quem já conhece a artimanha de outros tempos, aos enganados, só o desconhecimento.

  O campo é limpo, a plantação está ordenada, tudo a seu tempo: água, adubo, mãos treinadas. Sem visitas, sem frequentadores de ocasião, sem as incômodas aves de rapina, sem os enigmáticos gaviões, sem danças de andorinhas, nem voo de beija-flor. Um espantalho na cerca e a segurança preservada. Quem além do dono habita uma plantação?

  Há tempos me afastei do campo, mas por aqui a prática ainda permanece, acho. A proteção dos espantalhos, o afastamento das visitas, a plantação desabitada, sem riscos, nem surpresas. No trânsito, os carros de vidros escuros; os homens de óculos em grossas armações, ternos importados; as mulheres de saltos altos, inatingíveis, para além da estatura, atrás dos seus drinques coloridos. Plantação intocada, gente não frequentada. Não se vive somente da própria habitação. Não se aprende, não se muda, não se desloca, sem os outros; sem outras perspectivas e vozes dissonantes, a confusão ensina mais que a ordem.Gente que se acostuma muito consigo e ao seu igual, fica chata, envelhece, morre de tédio e certeza; certeza demais mata.

  Vez ou outra, os pássaros se acostumam com a presença do espantalho e invadem a plantação; o recurso da palha, travestida de humano quase nunca dura. Os mais persistentes ficam, se aproximam aos poucos, dia após dia, até descobrirem que de perto a ameaça não existe, o homem não está lá,  só quem ultrapassou a cerca, o medo, a ignorância, conhecerá o outro lado. E, só por insistência de uns corajosos, uns curiosos, as outras presenças passam a existir. Melhor, talvez fosse, não contar tanto com força alheia e deixar os espantalhos de lado, as cercas livres, a aceitação da insegurança, das possibilidades. Já conhecemos muito da arte de fabricar espantalhos, agora, talvez seja o tempo de mandá-los todos embora.



Um comentário:

Ana disse...

que consigamos espantar todos os espantalhos da nossa vida, que não nos deixemos transformar em espantalhos, a vida é muito melhor quando nos deixamos alcançar pelos outros:) beijos