domingo, 4 de maio de 2014

A se perder de vista

  O olhos nos mentem, invariavelmente, nos enganam; dizem que já foi, o que ainda está lá e nos fazem acreditar que vem, aquilo que nunca nos chegará. Os olhos nos traem e fazem brilhar insignificância, enquanto ofuscam o ouro de verdade. Os olhos, esse par de mentirosos, nos roubam maravilhas e nos presenteiam sucessivamente com cavalos gregos. Inventam beleza, para mais tarde, descobrirmos somente estupidez, acobertam milagres, atrás do que nos parecem vidas ordinárias. 
  Meus olhos escondem a chave no fundo da bolsa e me negam, sucessivas vezes, o direito à pressa, ao medo, à fuga; sorrateiros, revelam o doce escondido, quando a dieta acabava de começar; mal intencionados, fabricam sentimento, onde o que cabe é ainda desejo, dão propriedade aos discursos vazios e disfarçam de banalidade o que é essencial . Acostumados, os olhos deixaram de revelar; adestrados, só se atentam para o que todo mundo vê; medrosos, deixaram de olhar além; submissos, permanecem no limite do cercado de arame. 

  Ninguém enxerga o homem prateado, parado por horas, debaixo de um sol escaldante, imitando uma estátua que não existe; damos alguns trocados, oferecemos uns poucos olhares, mas não vemos o homem pintado de prata; o homem-cintilante é invisível sob os nossos olhos castanhos. E, no final da tarde, enquanto os apressados saem do trabalho para a casa, atropelando, ignorando, seguindo cegos, pelo caminho já introjetado, o homenzinho cinza-brilhante, busca debaixo de seu pedestal improvisado a bolsa, com trajes de um civil, identidade, CPF, título de cidadão cumpridor dos seus deveres e recolhe delicadamente o seu sustento na caixinha de papelão, graciosa, enfeitada por uma irmã afetuosa, uma esposa devotada, uma mãe prestimosa ou uma filhinha dedicada. E depois de cada gesto fino, ensaiado, executado com a precisão de um cirurgião, ele volta para sua casa gentil, solidário, grato, com restos de tinta em cada curva, dobra, depressão e pelos do corpo. Que olhos enxergam você, moço?

  No ônibus, passamos o cartão, damos o dinheiro ao cobrador e, nem ao menos, nos damos conta da sua face morena, seus olhos redondos, sua boca bem desenhada. Evitamos contato, toque, troca de palavras, damos dinheiro, recebemos nosso troco, atravessamos a roleta e pronto. E, então, quando o homem que gira a roleta para os passageiros, desce do seu assento, busca seu livro e o lê apaixonadamente, alguém dará conta dessa cena? Que olhos saberão que o senhor lê, enquanto trabalha, meu senhor?

  A mulher da loja de calçados é simpática, acolhedora e decora cada cor, número e modelo de uma infinidade de sapatos que cada visitante requisita, depois, abaixa-se e como uma mãe, com o seu filhinho aprendiz e ajuda cada cliente a calçar, acomodar bem os pés nos sapatos desejados e os incentiva a andar, testar e, então, quem sabe, comprá-los? A mulher da loja de sapatos tem a mesma delicadeza com os pés e pincéis, é pintora talentosa, sem tempo para exposição em galeria. Que olhos contemplam suas telas, artista?

  Um menino de bochechas redondas, cujo prato favorito é feijão com angu, apareceu subitamente sob o meu olhar e eu o vi. Surpresa, eu me lembrei de tudo aquilo que tenho perdido, enquanto os olhos buscam horizonte afora. Os olhos rebeldes revelaram muito além do menino que ninguém mais via, apontaram chave, batom, celular, lista de compras, no fundo da bolsa e sentimento, escondido em algum canto da alma. 

  Porque os homens custam mais a ver aquilo que já está sob os seus olhos. Os homens procuram longe o que já são ou o que trazem bem perto. A chave  nos escapará a mão, por vezes incontáveis, mas a potência dos olhos, quase sempre, é escolha nossa. No fim, só os olhos subversivos não são capazes de uma mentira. Para verdades invisíveis, pares de olhos desacostumados, selvagens, indóceis.




2 comentários:

Ana disse...

costumam dizer que os olhos não mentem, mas mentem, e muito...

Amanda Machado disse...

E mais...enganam a si e aos outros muito...eu acho.