segunda-feira, 12 de maio de 2014

Além da espera

   Vejo-a vindo de longe, figura frágil, corpinho magro, alta, mas não muito, branca, calça jeans larga, franzida pelo cinto, uma camiseta clara, com  a estampa de uma caveira colorida e no lugar dos cabelos, um lenço estampado, colorido, alegre, leve, vivo, muito vivo, dançarino, com as pontas levadas pelo vento a todo instante. Longos cabelos de seda; acho-a, particularmente bonita com o acessório.  Ela se aproxima e fica quase a minha frente. Ambas esperamos, por agora, um transporte, mais a frente, nunca se sabe o quanto caberá em nossas esperas. Quando perto, posso enxergar mais beleza, são traços delicados, ampliados pela escassez de pelos, a sobrancelha é desenhada, por mãos muito habilidosas, são arcos harmônicos, perpendiculares e delicados. A maquiagem é leve porque posso ver suas sardas claras. Diferente das outras pessoas com quem compartilhamos o espaço, não olhamos para os nossos celulares, o meu está na bolsa e o dela na mão, ela olha para algum ponto perdido e eu olho para ela; para o lenço brilhante vermelho, laranja, azul, verde e um pouco de lilás. Nada é mais bonito do que os cabelos dançantes da moça que espera.

  Não demora e eu percebo uma inquietação na placidez branca a minha frente: o lenço não se comporta como ela gostaria. Fino, escorregadio, vez ou outra, desce e cobre a testa quase toda, ela ajeita-o, o vento sacode suas pontas e ele escorrega mais para um lado, deixando a beleza um pouco torta. Ela desfaz o nó, ajeita-o bem colado à cabeça e refaz o nó com firmeza. Sozinha, independente, dona do seu cabelo de pano e de si. Agora, algumas pessoas a veem, e a cada olhar curioso ela enrubesce as bochechas rosadas de blush. Eu me incomodo com o constrangimento dela, sua luta inglória tão pública. E, por isso, torço para que a espera dela termine logo, antes da minha até. 

  Mas, meu ônibus chega e é o dela também, deixo-a subir antes, quero livrá-la dos olhares menos discretos que os meus. Ela mal senta e arranca seu problema de uma vez só e sem cerimônias, embola-o dentro da bolsa. Debaixo da seda leve, uma cabeça redonda, lisa, alva, brilhante e tão viva quanto o lenço. Ela é ainda mais bonita sem o cabelo estampado, porque ela preocupa-se menos em ajeitar-se, estar composta e é mais ela ou mais do que quer ser. 

  Quatro pontos mais e ela desce, o prédio pintado de rosa é referência em saúde e ela meu modelo de beleza. Porque orgulha-se subitamente do que tentava proteger. Não há proteção possível para todas as nossas fragilidades, a dela se fortaleceu, quando ela a assumiu, trouxe-a a público, deu aos curiosos o que eles queriam e ela pode ter o sossego que merecia. A moça com a caveira alegre na camisa terminou um espera e um suplício, para talvez ingressar noutras esperas e suplícios, mas ela é forte e leva um lenço bonito na bolsa, para o caso de, quando sair, desejar cabelos coloridos esvoaçantes.

  Ontem à noite, antes de dormir, rezei pela moça de cabelos de seda desobedientes e pelas nossas esperas, a minha, a dela e a de quem no mundo, de repente, recebe uma coragem e, enquanto aguarda, entra em uma luta. E, talvez por isso, sonhei bonito, sonhei leve, colorido e vivo, não como a caveira da camisa ou a estampa do cabelo, mas como a moça; a moça agarrada à sua espera. A moça que enquanto aguarda, trava lutas dificílimas. Mas ela é forte e viva, o sonho só pode ter sido um bom sinal.




2 comentários:

Ana disse...

também acho que o sonho foi um bom sinal:)

Amanda Machado disse...

:)