quinta-feira, 29 de maio de 2014

Das invisíveis perdas

  Perdemos o guarda-chuva há meses, mas se não chove custamos muito a nos darmos pela falta dele, só quando ameaça uma garoa é que a perda é inevitavelmente reconhecida, sentida e, por vezes, detalhadamente lembrada. O lugar, a situação, o dia do esquecimento é repassado e, tardiamente, lamentado. O comum é não nos apercebermos do valor das coisas até precisarmos delas. O que resiste, invariavelmente, é tomado como eterno, como se por estar ali há muito, não irá nunca embora; essas são as nossas piores perdas, as não vistas, não calculadas, percebidas tarde demais.

  Como a menina, que de repente, em uma barraca de festa de igreja tem seus olhos hipnotizados por uma pulseira que ama, mesmo ainda de longe, mesmo quando ela é só um fio brilhante, metade submerso por uma infinidade de outras bijuterias também baratas, mas nenhuma tão bonita quanto aquela. A pulseira é diferente de tudo o que ela conhece, é uma corrente cor prata com penduricalhos que imitam o sistema solar: estrelas, lua, sol e planetas; um sistema solar no punho, o que lhe parece a coisa mais bonita do mundo. E não é  fácil trazê-la para ela, que não tem mesada, não pode convencer a ninguém do quanto um objeto barato é tão valioso e, por isso, empenha grandes sacrifícios para tê-la. Economiza o dinheiro equivalente aos cinco dias de festa, vai a todas as missas, reza os terços com fervor e, ainda, precisa negociar todos os dias com uma sádica comerciante que jura que a peça é única e que não poderá guardá-la até o último dia da quermesse. As noites dormidas passam a ser angustiantes e a passagem de cada moça pela barraca, um risco dolorido: e se o sistema solar nunca for dela? E se a pulseira cigana nunca chegar ao seu punho? Perder um amor antes de tê-lo é um sofrimento que ela ainda não conhece.

  Depois de orações repetidas sofregamente, de toda a diversão perdida, dos argumentos construídos a cada dia, do choro, da manha infantil, do dinheiro não gasto, dos doces e brincadeiras não experimentados, ela finalmente conquista sua pulseira cigana. Seu punho direito é coroado, ganha a elegante importância dos nobres e os dois sóis são tão amados, que fazem-na adquirir um tique: o de mexer na pulseira e procurar pelo sol, em qualquer situação nervosa. É quando a pulseira abandona o seu lugar de mercadoria barata e passa a ser a própria menina, fundem-se uma na outra; ambas tornam-se uma só entidade: a garota da pulseira. Retirada só para o banho;  para uma bijuteria ela é até durável, logo fica fosca, uma estrela torna-se cadente, abrindo uma lacuna no círculo, mas ela sobrevive. Faz companhia e, principalmente, identifica alguém, dá a menina o direito a diferença, o prazer de ser única, a sensação de brilhar, mesmo entre tantas outras bijuterias baratas como ela.

  Mas ao fundir-se ao seu sistema solar particular, a menina acostuma-se demais, passa a não ter os cuidados intensivos como antes e, às vezes, até se esquece da pulseira, deixa-a em cima de uma mesa, no lavatório do banheiro, na pia da cozinha. Até o dia em que  convencem-na a trocar o acessório, somente por algumas horas - o tempo de um evento importante - pelo bracelete imponente, novo, adulto. Por algumas horas o punho direito trai a sua pulseira de feira. A novidade traz o esquecimento das memórias mais caras e a pulseira é esquecida, perdida no bolso de alguém que não tinha compromisso com o pedaço da menina; que punida lamenta pela traição, pelo abandono, pela falta que os seus dois sóis farão nos momentos mais difíceis.

  Depois de muito procurar, ela não reencontra aquilo que era parte de si. A verdade é que na tentativa de reaproximação, às vezes, perde-se o tempo, a hora exata, a palavra certa, aquela única que nos salvaria da tragédia do adeus, o pequeno fio de um novelo inteiro entrelaçado, damos o passo e o outro também dá, mas em direção oposta. Não há muito o que fazer, quando só nós comparecemos ao encontro, quando todos os outros faltam, cancelam, têm outras prioridades. Não desejei jamais ser a prioridade de um outro alguém, mas sempre me ressenti com os segundos planos; porque não sou humilde, nem generosa, tampouco indulgente, por isso, faço requisições muito humanas de receber, nunca na mesma medida que doo, mas de jamais ir sozinha a um encontro.

  Sou a pulseira cigana de alguém, escapo-lhe um pouco por dia e ele não me faz parar, não segura, não repara, não se incomoda com a distância que cresce a cada segundo. Sou o guarda-chuva na estiagem do inverno, esquecida na poltrona do café, no banco daquela praça, atrás da porta de alguma repartição pública. Perdi tanta coisa nos últimos anos, mas a dor maior é a de estar sendo perdida por quem não vê.

  Há ausências percebidas muito tardiamente, perdas lamentadas quando não há mais regresso. Hoje de manhã, enquanto caminhava, encontrei uma pulseira barata no meio da rua, é pequena,  caberá somente no punho de uma criança, está feia, velha, gasta e é barata, mas guardei-a comigo como um tesouro. Que saudades que tenho do meu sistema solar e ainda hoje, passo a mão pelo punho direito na tentativa de um reencontro. Impossível. Eu perdi minha pulseira cigana; perdi-a porque achei que meu punho merecia algo novo, melhor, mais brilhante. E eu que não sabia que os meus sóis já desgastados tinham muito mais brilho do que a novidade. Perdemos muito e também nos perdem sem ver; e, um pouco por dia deslizamos, sem volta, por entre dedos que lamentarão muito a nossa falta.



Um comentário:

Ana disse...

e vamo-nos perdendo e encontrando, aos outros e a nós principalmente!