quarta-feira, 14 de maio de 2014

Quando uma realidade alcança um sonho

  Nem sempre o imaginado, quando torna-se verdade, é tão bom quanto o sonho. Acontece. Acontece sempre. Sobrecarregamos  um desejo de expectativas, de sensações guardadas para serem sentidas em um tempo prometido e o pesamos, tornado-o, mais tarde, um fardo incômodo, um pedaço grande demais de carne parado na garganta, não há água no mundo que faça-a descer. O sonho era bonito e quando realizado não se parece em nada com o que era antes de nascer. E, segue-se, com um filho não querido nos braços ou rejeita-o à primeira porta da rua. Mas às vezes, a realidade encontra um sonho, abraça-o forte, sorriem juntos e, velhos companheiros, assistem a felicidade de uma pessoa. Acontece também, a realidade pode ser tão plena quanto um sonho.

  Tive um sonho acalentado por anos, o de sentar na varanda da casa da avó com um livro no colo, lendo-o inteiro, sem paradas, sem dúvidas com as palavras, entendê-lo todo de uma só vez, sem explicação de gente alguma. A varanda da casa tinha um muro baixo, portãozinho de meio corpo e naquele muro eu sentaria, achava que a imagem mais bonita do mundo era a de uma pessoa com um livro, ainda acho. E pensava nas vozes, ao fundo, que não me tirariam a atenção, nas pessoas da estação desativada, em frente a casa, que era como a praça do lugar, servia como um centro de convivência de donas de casa, crianças, bêbados, mas nada tiraria a minha atenção, nada seria capaz de me fazer perder uma letra, uma palavra, nada poderia me desviar de ser feliz, como no sonho. 

  Nunca contei para ninguém a imagem que impulsionava minhas idas à escola, as leituras ensaiadas e cada palavra gaguejada, decifrada e, finalmente, compreendida. A vida passava a ter um único sentido. Não queria doces, nem festas, vestido novo eu também rejeitaria, só para subir no muro da varanda e colocar no colo um livro. Eu ainda não era alfabetizada, mas sonhava com o vento no rosto, a companhia sólida de um amontoado de papéis impressos, a brincadeira correndo fora e eu menina do livro.

  O sonho durou tanto quanto eles devem durar; até termos meios de poder realizá-los. Eu aprendi a ler, a mim pareceu uma infinidade de anos, mas não deve ter sido. E me preparei muito para minha cena sonhada: marquei dia, hora, livro, roupa e fui até a varanda da avó, emocionada, fingindo uma naturalidade que a ação não tinha. E hora nenhuma, ninguém, em lugar algum me impediu de seguir ao encontro daquilo que, para mim, era a beleza maior de uma vida. Segui para o muro, sentei, recostei na pilastra escolhida há muito e abri o livrinho. E, ao abrir, de repente, o vento veio, as vozes da casa apareceram ao fundo, a gente da estação estava lá e eu lia o primeiro parágrafo inteiro, sem um tropeço. A vida era boa, eu era feliz e, finalmente, eu era a imagem sonhada de alguém com um livro. E, antes que eu chorasse ou que gritasse ou cantasse, vi de longe o avô, que não conhecia as letras, de enxada parada, chapéu nas mãos e lágrimas nos olhos, quando levantei a cabeça, surpresa pela presença de uma testemunha não imaginada, o avô enxugou as lágrimas na manga da camisa, acenou e continuou na lida. 

  Das belezas todas da vida, desta eu jamais esqueci a sensação. Bonito é quando uma realidade alcança uma imaginação muito acalentada. Esquece-se, de repente, de tudo o que não foi realizado, das falhas sucessivas da vida conosco e das nossas com o mundo. Só para viver no tempo daquela única realização possível, só para injustamente não lhe viramos a cara, não culpá-la das negativas das outras; e comemorarmos sua presença. Eu e o livro deixamos de sermos únicos, um do outro e compartilhamos com o avô da possibilidade que ele nunca teve. Felicidade maior é quando o real tira o sonho para dançar e há testemunhas amorosas para legitimar a veracidade de um acontecimento desses. O livro, o avô, a casa e as suas vozes, a estação desativada, uma menina com um sonho: disto também é feita a vida. E ela boa, sô! Ela é que vale todo o esforço de uma pessoa.





2 comentários:

Ana disse...

até hoje só li um livro de uma assentada (Aparição, de Virgilio Ferreira), não foi planeado mas quando acabei não era a mesma pessoa que o tinha começado. Livros têm esse poder, adoro!

Amanda Machado disse...

Ah sim, sem dúvida, terminamos sempre sendo outros!