sexta-feira, 5 de junho de 2015

Os pés que não são deles

   Vejo-a solitária, atrapalhada com as sacolas do supermercado atravessando a rua. O semáforo que não fecha especialmente pela sua passagem. Não devia estar aqui. O lugar dela vai muito à frente deste, ela sempre foi melhor que isto, que todos nós, ordinários, impuros, derrotados. Ela sempre esteve rodeada de outros, sempre comandou algum bando, capitaneou explorações invejáveis. As mãos não deviam estar segurando sacolas de plástico e o pés não deviam tocar o asfalto imundo da cidade. Ela que sempre foi tão maior, tão superior, agora, está de volta pelo medo que não pode controlar. Parece feliz, parece saudável, mas também tão comum, tão igual às mulheres que frequentam a sessão de limpeza do supermercado. Na sacola dela o mesmo detergente da promoção que eu carrego. Pela primeira vez nossos olhos se encontram numa mesma altura. Ela me cumprimenta, eu respondo, comum, igual, finjo que não há surpresa.

  Chamam-na de desistente; dizem que desperdiçou  talento e a chance, que se entregou à covardia, escolheu a pequenez da vida modesta. Falam do absurdo da sua entrega. Por segundos tenho os olhos dela nos meus e não encontro sinal de fraqueza. Pelo contrário.

  A dor dos outros tem mais remédios que a nossa; para a confusão alheia a saída do labirinto é logo ali. A vida deles é cena de filme que aborrece a gente - Como ele não vê que está sendo enganado?, Como ela não percebe que é o outro que a ama?, Que idiotas!  - a solução do que não é nosso, a gente tem com facilidade. Porque o distanciamento nos dá o benefício da neutralidade, de não estarmos submersos no afeto, só frente a um problema que nem nos diz respeito. Por isso a possibilidade de uma alma serena, que não atropela, não se exalta, nunca se precipita. Que resolve colocar fim ou começar algo, sem excessos, sem dúvidas ou arrependimentos; enxerga com clareza a atitude do outro, condena ou absolve sem dor ou incerteza. Segue certo, sem o que ficou para trás chamar para um último olhar.

  Enquanto os outros estão perdidos encontramos o caminho para eles, torcemos, sugerimos, apontamos, vez ou outra, quase andamos por eles, mas, no fim, só eles podem se salvar. A dedicação quase divina aos problemas deles é para além de altruísmo, é humana, porque é a voz do medo, da identificação, da tentativa de acertar a vida do outro para, quem sabe assim, ter a nossa de volta aos eixos, por merecimento, por justiça.

  A tristeza do outro é menor, sem tanta razão, é egoísta e cega; é despropositada, porque se limita ao que não vai bem, por que ele é incapaz de se atentar ao que é bem sucedido? A falta de coragem deles é infantil, é tola, por que se escondem, se a luta seria vencida com facilidade? A confusão que não é nossa é simples de ser resolvida. Apaga este e aquele episódio, esquece umas palavras mal escolhidas, perdoa os deslizes dos outros ou os leva até à saída, levanta do tombo antes do choro, olha para a vida do jeito que ela merece ser vista ou procura uma janela mais promissora, não se enterre, não se afogue, não sucumba.

  Mas os problemas dos outros são surdos, não ouvem nenhuma voz, senão a própria; a confusão deles é cheia de curvas, atropelos e emaranhados de fios soltos sem fim.  Eles se atrapalham é no turbilhão dos sentimentos que não cessam; não termina um para começar outro; todos lutam por um mesmo espaço, num só tempo. Não há razão que fale mais alto, quando a alma é atravessada por sentimentos que não podem ser confinados numa caixa, prateleira ou coluna no papel.

  Ela alcança o outro lado da rua ao mesmo tempo que eu. Somos duas mulheres com um detergente barato na sacola. Faço votos de que melhore, se for mesmo o caso. Se não, que os outros se curem da indiscrição de resolverem a vida alheia; cada um com o seu novelo embaraçado. Que ela  faça o que só ela pode fazer, não o que os outros fariam e, muito menos, o que eles dizem que fariam. O detergente já experimentei e é ruim. Erramos, minha cara, há de se ter paciência e força para limpar o chão e para seguir o caminho que só nós mesmas podemos fazer. Começo pela limpeza, ela achará o seu melhor início.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Então! Eu gosto de ler as coisas que escreve. Ontem estava lendo esta postagem e discuti com minha filha - falei que parece coisa de Sartre (o inferno são os outros), mas tem um que de lacaniano (Lacan definiu o sujeito como o que um significante representa para outro significante.) Ela riu, achou que eu estava divagando, viajando nas palavras, mas achou que eu deveria reler e que talvez achasse o caminho do por que este texto me chamou a atenção.
Bem, resolvi que não está para Sartre, afinal a descrição não é esta. Mas por força da idade, eu acho, lembrei de outro texto lido em tempos idos, do Rubem Fonseca - O outro. Não parece com o seu, mas um está inserido na mensagem do outro. Mais uma vez parabéns. Ah, o texto do Rubem: http://www.releituras.com/rfonseca_outro.asp

Amanda Machado disse...

Olá Paulo!
Bem, depois dos comentários elogiosos e incrivelmente alentadores que faz aqui, penso que posso partilhar contigo sobre alguma possibilidade ou, ao menos, alguma aproximação do motivo deste texto ter representado algo para você. Acho que as referências (Sartre e Lacan), são sim possíveis (claro que considerando as distâncias muito ampliadas entre as obras de ambos e os meus textos), porque a escrita, me parece, é repleta de interferências das quais nem temos consciência, não sabemos a proporção ou quando começa e onde termina. Nossos modelos são diversos e dissipados, difíceis de serem alcançados ou analisados em cada ponto.
Entretanto, o que gostaria mesmo que soubesse é que a escrita sempre me pareceu muito gratificante, uma preciosidade nela mesma, sem necessidade alguma de resposta, bastava a próprio processo, Compreende? Mais tarde, descobri que o olhar do outro era, também, uma contribuição importante, porque quando o outro se identificava ou era minimamente afetado, a produção ganhava mais um sentido. Agora, a partir deste e de outros dos seus comentários, ganho uma nova e valiosa contribuição: os olhos que não se limitam ao que está escrito, mas que transcendem e me levam na direção da reflexão do que eu achava pronto. Sou grata infinitamente pela escuta e resposta. E como gratidão, ofereço o que tenho: http://www.parecolouca.blogspot.com.br/2015/06/a-mulher-da-ilha.html

PS: não conhecia esse conto de Rubem Fonseca, adorei lê-lo. Obrigada mais uma vez!