quarta-feira, 8 de julho de 2015

Rota de encontro

   Andando pelas ruas vazias do domingo gelado, desertas de gente, da afobação do trânsito habitual, da impaciência das horas. Esquece o motivo da fuga, o dia da semana, os anos passados. De repente perdida, de repente andando como se não tivesse um caminho, casa, hora. De repente oito anos, espalhando com os pés as pedrinhas soltas do asfalto, tem os braços frouxos, largados pelo quadril, músculos elásticos que se movem e fazem-na se abanar, não de calor, porque faz muito frio, mas de alegria repentina, de felicidade de infância. Não carrega blusa, bolsa, carteira, identidade não tem,  cartões tampouco, é só um corpo solitário, livre de trajetória, desatado dos dias, agitando-se pelas ruas vazias de outros. Era assim também quando saía para buscar pão, para o café da tarde na rua de baixo. O caminho era feito sob uma eternidade de horas, descer a própria rua era uma sucessão de outras viagens; ao compromisso do pão na mesa às cinco da tarde, ausentou-se dezenas de vezes.

  Reencontrada a infância de pernas e braços sem limites, de um tempo que não é demarcado pelo relógio, do esquecimento daquilo que requisitará resolução, leva as mãos nas grades do muro baixo da casa da esquina, mas não consegue tocá-los, tenta mais uma vez e depois outra, dobra os joelhos e, antes dos dedos sentirem a friagem dos ferros, o entendimento, o desamparo de não ter oito anos, nem buscar pão para o café da tarde. A mãe não estará na esquina irritada pela demora, nem terá que devolver troco algum. Os cento e oitenta centímetros que a afastam do chão lembram-na, para sempre, de que é grande e de que não pode estar perdida.

  E no desconsolo de ser grande sentiu frio, olhou para o outro lado da rua e viu um homem, achou-o suspeito e teve medo, ele passou sem nem olhar para ela, lembrou da previsão do tempo e o céu cinza e achou que a chuva não demorava a cair, está longe de casa, sem pão ou dinheiro, sozinha e vai chover. Crescer é, de repente, ter medo, ser limitada pelos receios. A volta agora é urgente.

  Terminado o caminho, há uma comunicação que precisa ser feita,  algo que precisa chegar a um outro alguém, mas não se sabe como. Porque as palavras confundem, o silêncio perturba, os sinais passam desapercebidos, o subentendido ofende. Há coisas aqui que ninguém mais vê, precisamos, então, traduzir para uma linguagem  que o outro reconheça, como fazem com a linguagem de videntes para o braile, possibilitar o acesso. Mesmo sabendo que nenhuma tradução conseguirá reproduzir a essência mais profunda de uma obra escrita, nem quem lê a obra original consegue captar o que o autor desejaria, nem o próprio autor consegue ler nas suas palavras o que sentiu quando escreveu. E, nesse infindável círculo de linguagem perdemos todos, mas o esforço da comunicação ainda assim deve ser feito. É um fardo isso, sei. Mas é o que é.

  Não há mais grades da sua altura; crescer é constatação também. Além de medo e  enfrentamento: -Hoje é preciso uma tradução, hoje alguém vai me ler e eu quero ser acessível.

  Na volta, não há espera materna, mas chuva forte caída sobre os ombros. Não trouxe consigo joelhos feridos pelas quedas na corrida, nem calça rasgada pelos escorregadores de madeira descuidada, nem restos de flores roubadas na praça ou jardins de vizinhos, nem desculpas inventadas pelo atraso  ou sorriso desdentado e brilhante. Desencontrou-se com a infância e veio adulta para casa. Não há café da tarde a sua espera, mas um compromisso do qual não pode fugir; para a verdade não há rota de fuga. A grade do muro da casa da esquina lembrou-lhe de seu esquecimento premeditado. "Crescer dói", o médico da família advertia, "os ossos sofrem com o impacto do desenvolvimento", é preciso doer, não alcançar as grades e se sentir desconsolado para, finalmente, encontrar-se consigo e o seu compromisso. É preciso dizer, ao menos é preciso tentar dizer.





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