De repente, de um lugar limite em que se está, perdido de perspectivas outras, instalado numa ausência de promessas, vemos uma janela se abrir e, depois dela, outra, e logo, uma infinidade de caminhos possíveis se instalam a nossa frente, caminhos antes não imaginados, se tornam disponíveis ao avanço desejado. Como numa magia, uma esperança de que não é preciso nos mantermos estáticos, presos a esse mundo onde não nos reconhecemos. E esta talvez seja uma espécie de descoberta, de vislumbre de liberdade. E, a partir dela, vamos além. Superamos a falta e corremos em direção ao infinito que sobeja.
Contou-me de um tempo em que vivia numa casa afastada do povoado, onde a noite era de uma escuridão profunda, onde os dias demoravam muito a passar e que se sentia, especialmente depois das 6 da tarde, solitária, desconsolada, incompreendida das pontas da trança apertada, ao dedo do pé no chão de terra. E sentido-se desassistida, pensava em pular no rio que passava no quintal de casa, afogar sua solitude de menina nas águas indulgentes que margeavam a casa. Só queria pular no rio, acabar com aquela angústia toda, encher de umidade aquela aridez de sentimento, prender com uma pedra a escuridão muito firme das noites e deixá-la no fundo para sempre. Não sofria de falta de afeto, mas tinha como marca comum, de outras crianças do seu tempo e região, a penúria de uma comunicação muito equivocada, da falta da linguagem; de toda ela, escrita, falada, sentida, de olhos que a fizessem querer ficar. E isto é, tantas vezes, a grande fatalidade do mundo, abandonamos ou nos deixamos abandonar não pela ausência de algo, mas por não termos sabido dele a tempo.
E quando o desconsolo latejava o coração, quando estava prestes a não suportar mais, saía pela porta dos fundos, atravessava a horta, descia o monte de terra, soltava o corpo, quase sem direção, e ia ter-se com o rio familiar que passava pelo terreno da casa. E bastava chegar na sua beirada, que o medo, a incompreensão, a escuridão das noites se dissipava, olhava para rio e desistia de entrar, olhava para o rio e sentia-se finalmente consolada. As águas avermelhadas abrandavam o desassossego, acarinhavam os cabelos, que desconheciam mãos, embalavam as esperanças de um outro lugar, onde a vida fosse menos seca e as horas menos apercebidas.
Muitas vezes, onde achávamos que nos perderíamos é o lugar do nosso encontro, bastava sempre um segundo olhar, uma vontade invertida e ela tornava a ter vontade de vida. Não esteve só; nunca o rio a deixou perdida em uma dor, encontrava afago na água barrenta e seguia. O mesmo rio que a incitava ao término, era o motivo maior da continuação. Na segunda olhada as forças já estavam restauradas e ela voltava a ser feliz como antes. Que riqueza é ter um curso d'água detrás de casa e nele renascer sozinha.
Olho para ela e vejo essa força de rio, essa busca e encontro de passagem nos lugares mais ermos, nos terrenos menos favoráveis, seu jeito é silencioso e, outras tantas vezes, implacável, aprendeu com o rio que passava no seu quintal a não desistir. E nela, que tanto ainda desconheço, enxergo uma bendita herança, a marca deixada pelo rio barrento e consolador. Nada escapa à vida, ela mesma é quem nos recompensa daquilo que não pode nos oferecer. Bastava ver o rio e o afeto que não tinha não faltava mais.
2 comentários:
Menina!!!!! Vou fazer aqui uma pequena alteração ao pensamento do Mario Quintana, que disse: "Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!"
Então, no meu plágio barato e inédito - Um bom "texto" é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!
Ah Paulo...este é o melhor/maior/mais bonito retorno que uma pessoa pode ter! Que bom que se identificou...é todo seu!rs
Obrigada!
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