Ser água e ultrapassar obstáculos sem alarde, quando possível. Ser água e levar embora o que não tem mais serventia, senão atrapalhar o semear de um futuro. Apagar labaredas ensandecidas. Transportar objetos, pessoas, seres que precisam ganhar novos espaços; ser condutora, propulsora, ponte de encontros entre dois separados que se necessitam e terminado o trabalho, seguir sem retorno. Empurrar, arrastar ou segurar, quando o tempo ainda não for para saída.
Transpor barreiras, ora delicadamente, gota por gota; ora impetuosa: destruir, romper e conquistar por força desumana. Nunca voltar atrás; ter seu tempo em cada lugar, sem repetição ou segundo olhar. Esvaziar-se completamente na prosperidade e aprender a ser completa quando estiver cercada de miséria . Não esbarrar sem propósito, ser obstinada e, num mesmo tempo, inútil. Ser só água. Sem para, onde, quanto, quando e como. Água.
Integrar-se aos sentimentos, afogar mágoas, arrefecer iras, espalhar partículas que se querem muito agregadas e que por isso, barram os desejos de circulação, transportar sinais até sucumbir aos olhos em forma de líquido marítimo. Ser água e cair como dádiva nas relações ressecadas pelo descuido do tempo, exposição ao calor intenso, esquecimento sob sol implacável.
Ser água e jamais permanecer muito tempo numa mesma forma; mas ultrapassar estados. Congelar-se sob temperaturas muito baixas e passar ao tempo de ser sólido, duro, experimentar o toque, o exercício da submissão ao que tem mais força; deixar os dedos experimentarem o gélido. Ser fluida e passar pelos caminhos de jeito suave, líquida, aplacar todas as sedes. Aprender a ser leve quando o ar for abrasador e evaporar-se, não ser mais visível, mas ainda assim estar plena, ser água ainda.
Frequentar os brejos cinzentos, enlamear-se, viver com e pelo barro e, assim, alimentar outra espécie viva. Ultrapassar os caminhos escuros, abandonar o brejo, o odor fétido e seguir rumo à purificação, deixar rastros de elementos, de composição, de outras fontes e buscar o começo de tudo - mesmo sabendo que o início é sempre outro e nunca aquele de onde veio - voltar a ser nascente.
Fluida, dura, leve, implacável, suave, arrasadora ou delicada. Ser múltipla e uma só. Aprender a continuar depois de cada curva, não morrer nunca, mas transformar-se noutros estados, quando não houver jeito de continuação. Seguir ao fim e ultrapassá-lo, para ser início e correr de novo outros riscos que nunca terminam. Ser água e aceitar o destino da passagem.
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