domingo, 20 de setembro de 2015

Entre brejo e nascente

  Ser constante e ao mesmo tempo intermitente; frequentar o superficial, mas também saber escorrer aos subsolos mais sedentos. Recolher-se às paragens, quando seguir solicitar mais forças do que as guardadas, recuperar-se em açudes calmos, até os ânimos voltarem e permitirem o correr solto pelos caminhos intranquilos, perigosos, trajetórias livres de previsibilidade. Passear pelas zonas temperadas ou tropicais, mas não permitir qualquer vínculo que aprisione.

  Ser água e ultrapassar obstáculos sem alarde, quando possível. Ser água e levar embora o que não tem mais serventia, senão atrapalhar o semear de um futuro. Apagar labaredas ensandecidas. Transportar objetos, pessoas, seres que precisam ganhar novos espaços; ser condutora, propulsora, ponte de encontros entre dois separados que se necessitam e terminado o trabalho, seguir sem retorno. Empurrar, arrastar ou segurar, quando o tempo ainda não for para saída.

  Transpor barreiras, ora delicadamente, gota por gota; ora impetuosa: destruir, romper e conquistar por força desumana. Nunca voltar atrás; ter seu tempo em cada lugar, sem repetição ou segundo olhar. Esvaziar-se completamente na prosperidade e aprender a ser completa quando estiver cercada de miséria . Não esbarrar sem propósito, ser obstinada e, num mesmo tempo, inútil. Ser só água. Sem para, onde, quanto, quando e como. Água.

  Integrar-se  aos sentimentos,  afogar mágoas, arrefecer iras, espalhar partículas que se querem muito agregadas e que por isso, barram os desejos de circulação, transportar sinais até  sucumbir aos olhos em forma de líquido marítimo. Ser água e cair como dádiva nas relações ressecadas pelo descuido do tempo, exposição ao calor intenso, esquecimento sob sol implacável.

  Ser água e jamais permanecer muito tempo numa mesma forma; mas ultrapassar estados. Congelar-se sob temperaturas muito baixas e passar ao tempo de ser  sólido, duro, experimentar o toque, o exercício da submissão ao que tem mais força; deixar os dedos experimentarem o gélido. Ser fluida e passar pelos caminhos de jeito suave, líquida, aplacar todas as sedes. Aprender a ser leve quando o ar for abrasador e evaporar-se, não ser mais visível, mas ainda assim estar plena, ser água ainda.

  Frequentar os brejos cinzentos, enlamear-se, viver com e pelo barro e, assim,  alimentar outra espécie viva. Ultrapassar os caminhos escuros, abandonar o brejo, o odor fétido e seguir rumo à purificação, deixar rastros de elementos, de composição, de outras fontes e buscar o começo de tudo - mesmo sabendo que o início é sempre outro e nunca aquele de onde veio - voltar a ser nascente.

  Fluida, dura, leve, implacável, suave, arrasadora ou delicada. Ser múltipla e uma só.  Aprender a continuar depois de cada curva, não morrer nunca, mas transformar-se noutros estados, quando não houver jeito de continuação. Seguir ao fim e ultrapassá-lo,  para ser início e correr de novo outros riscos que nunca terminam. Ser água e aceitar o destino da passagem.




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