segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Não era desamor, era desejo de partida

  Ele poderia ter lido Neruda, sua voz grave, os erres marcados, os contornos sonoros macios, a sua
respiração calma, separando os versos, ritmando as mudanças de estrofes e, depois de um suspiro fundo, era o fim. Ela poderia ter dançando  no quarto, naquela manhã, depois de acordar melancólica escolheria uma música bonita,  passaria os dedos pelo criado mudo, saltaria da cama e ondulando os quadris, levantando os braços acolheria as batidas sonoras. Continuaria  mesmo quando a música terminasse, encenaria muda seu balé improvisado e numa pirueta final, seus olhos buscariam os dele e saberiam que acabavam ali. Poderiam ter recorrido ao tango, fizeram aquelas semanas de aulas há três anos, quando foram para Buenos Aires, talvez se recordassem dos passos, de alguns ganchos que a professora portenha tentou ensinar ou dos dias ensolarados em Palermo Viejo. E então, só depois, o abraço dolorido e o partir.

  Poderiam ter feito uma última viagem para casa da avó dela, comeriam os doces de compota, colheriam as jabuticabas, se fosse época ou mexericas, laranjas também não seria mal e depois de se despedirem da avó, prometendo nova visita, entrariam no carro, poriam numa rádio qualquer e ao pararem o carro antes da linha férrea, uma música começaria, ambos saberiam que as frutas estragariam na geladeira e a visita não aconteceria mais para um dos dois. Talvez consertassem a porta da varanda, adiada nos últimos meses, arrumariam o vazamento da pia e pintariam a cozinha, com o apartamento pronto, teriam uma conversa banal sobre o preço cobrado pelo encanador e se despediriam.

  Deveriam ter ido à Cuba, matriculavam-se naquele curso de cinema, que era mais sonho dele, mas que era também uma vontade dela e, depois, na volta, tomariam cada um, um táxi. Talvez Paris e o Louvre, a viagem de carro pela Toscana, cinco dias entre Madri e Barcelona ou os castelos alemães. Talvez um fim silencioso, partilhado, resignado e nós desatados com afeto.

   Mas não foi. Não é. Foi num arrombo, numa tempestade, numa enxurrada de desencontros, acusações, a ligação interrompida, outras não atendidas, as mensagens não respondidas, os pedidos de explicação impossíveis. As palavras que saem atropeladas e por isso, morrem as ensaiadas e nascem outras num improviso hostil, o rancor que já era instalado, mas antes ignorado, emerge e se espalha pela casa, tomando memórias, planos futuros, pertences em comum. Quem ouve não entende que aquele que fala não rejeita a história, nem a pessoa, mas um futuro nas bases desse presente que parece aterrador. Alguém e a sua tentativa alucinada de escapar do que é agora, talvez possa ser diferente sozinho e depois, quem sabe, até com outro parceiro. No fim, é a pressa mesmo de se desvencilhar, não do outro cuja tarefa agora, em meio a mágoa, já é mais fácil, mas de si sem este outro, essa sim missão duríssima.

  O final do amor que  não recolhe o lixo, não lava a louça, nem organiza as gavetas, não inventa metáforas, não se ilude com poesia; o final do amor que não aguenta mais dois minutos de filme e sai da sala antes dos créditos finais, que não espera mais na fila, mesmo que a sua senha seja a próxima. O final do amor que não espera um pacote turístico, um reparo na casa, nem Neruda ou dança. Não há gentileza e suavidade possíveis quando é um fim. Porque, na verdade, quaisquer que fossem os cenários, cenas, falas ou trilha tudo levaria a um só desfecho: pressa pela descoberta de um lugar que não seja mais este.



4 comentários:

Unknown disse...

tás foda, visse.

Unknown disse...

Não me canso de ler este belo texto.
Samarone

Amanda Machado disse...

Gracias Samarone! Muito bom ouvir (ler) isto, nem sabe o quanto!

Amanda Machado disse...

:)