domingo, 24 de agosto de 2025

Quantas janelas terei que descobrir para que eu conheça o voar?

    Quantos poemas faltam para que eu descubra a palavra exata? Quantos versos, estrofes, rimas ou versos livres eu terei que alcançar para encontrar o nome do que eu sinto? 
    Por quantas líricas terei que esperar para finalmente eu ser capaz de chamar?
    Quantos bem-casados ainda terei que guardar na bolsa e comer na manhã do dia seguinte para que as minhas amigas encontrem a felicidade? E se ela não usar véu? E se ela estiver de chinelos, atravessando a rua para levar o lixo até a calçada, antes do caminhão passar? E se ela usar mochila e sapatos para neve? 

    Quantos pedidos de casamento terei que negar, por quantos ainda terei que esperar, qual eu devo consentir para eu ser verdadeiramente aceita? 
    Por quantas sessões de análise terei que passar até ser estável? Quantos Freuds, Lacans, Kleins, Jungs precisarão ser lidos para resolverem as minhas questões? Quais os traumas eu ainda não sei? 
    Quantas senhas eu terei que memorizar até a minha aposentadoria? E quando eu não for mais capaz de me lembrar, quem digitará o meu CPF para a caixa do supermercado? 
 
    De quantas tristezas eu terei que me levantar até amadurecer? Quantas ainda serão capazes de me lançarem ao chão?  Poderei ser grata a todas, depois do entendimento? Serei capaz de perdoar o meu próprio coração e meus joelhos ralados?
    Quantas voltas no quarteirão eu terei que andar para que eu encontre a paz antes da paz? 
    Quantas alegrias preencherão a minha saudade? Quantas saudades constroem uma biografia? As ausências que não são saudades se tornam fendas ou nada?
    Quantos muros eu terei que construir para me proteger? De quantos eu terei que desistir para não me invisibilizar?   
    Quantas paixões farão meus olhos mais brilhantes? Quantas me deixarão insone, sem apetite e apartada do solo?
    Quantas opiniões terei que ignorar até eu assumir a minha liberdade? Que não é leve, tampouco plena, mas é minha. Quantos olhares eu terei que preterir para que não seja o que eles querem?
 
 Um mundo se desfaz toda vez que se toma uma decisão; um mundo novo acontece depois daquele outro
desmoronado. 
    Um solo se esfacela sob os pés, toda vez que nos omitimos de uma decisão; um mundo se deteriora em nódoa e naftalina quando insistimos em mantê-lo intocado. 
 
    Quantas flores antes do meu obituário? Quantos elegantes vegetais serão sacrificados para esconderem a minha fealdade? Quantos pastos, quantas matas precisarão ser devastados para que os nossos pulmões ganhem alguma importância?
    Quantos destinos ainda vamos atravessar? Quantos confirmaremos? Quais abalaremos? Quantos universos conheceremos até sermos capazes de contarmos sobre o nosso?  
 
    Um instante acaba antes de estarmos verdadeiramente neles. Tudo é passado. Esse domingo já estará longe quando eu terminar essa carta. 
    Uma pessoa nos abandona antes de conhecermos completamente suas intenções, seus gostos, suas feridas, seus sonhos, as ruas que errou, os relógios que perdeu. Uma pessoa se apresenta e começamos tudo de novo, esperando sermos outros, com novos erros, mas os equívocos se repetem, repetem, repetem até sermos curadas. 
 
    Quantas orações para sermos salvas do engano da grinalda, das flores e da proteção dos muros? Quantas rezas até sermos críveis?            
    Quantos punhos teremos que erguer para não sermos banidas nem com socos nem com chistes? Quanta doçura é preciso estocar para que a minha negativa não seja uma sentença perigosa?    
    Quantos gritos até sermos ouvidas? Quanta poesia até sermos genuinamente lidas? 
    Quantas janelas terei que descobrir para que eu conheça o que é voar sem voltar para me explicar?
     


 

domingo, 10 de agosto de 2025

O avarandado amor

    Eu penso numa imagem com a qual eu queria te presentear: uma casa com paredes brancas e meio muro azul. Uma infância que não fosse órfã, mas comum. Com as dores inerentes a toda infância, nenhuma além do esperado. Uma adolescência que não fosse definitiva, mas ponte.
    Uma vida adulta mais simples, sem tantas decisões que a partisse e desilusões que a alcançassem. 

    Penso, sobretudo, numa varanda. Com a intimidade resguardada por um retângulo aprazível, entre folhas, flores e cadeiras azuis. Um bebedouro para os pássaros, uma almofada bordada pela tia Sônia, tapete de sisal e uma mesa baixa para colocar a xícara, os óculos, os livros. 
    Eu queria te dar essa varanda para que você respirasse, para que você olhasse para o céu em segurança, sentisse o vento e os raios solares sem pressa. 
 
    Eu só saí hoje porque precisava buscar alguma coisa para te dar. Não sabia o quê nem quanto ou onde exatamente buscar, mas algo que alcançasse e consolasse a suas faltas. Especialmente as dos últimos dias. Aquelas fissuras novas instaladas que ninguém vê. 
    Queria trazer uma imagem para que você voltasse acreditar, uma fotografia de um lugar ainda desconhecido, mas familiar nos seus sonhos. Queria trazer seu desejo de volta.
     Fui à rua para trazer o que te resgatasse, algo que pudesse sustentar, ao menos, os seus próximos dias.
    Então, eu encontrei um homem de calça de moletom cinza e casaco de camurça marrom, com cabelos brancos e postura sutilmente curvada, que me lembrou o nosso avô, nos últimos dias dele. Acompanhei com o olhar até onde pude, com a esperança de que ele me levasse até à imagem. Mas ele andava muito mais lento do que eu podia. Virei a esquina e não tenho a imagem.
    Pensei que levá-lo comigo não seria o suficiente para salvá-la e, talvez, a deixasse mais triste e profundamente melancólica. Embora eu tenha gostado de vê-lo. 
 
    Na outra rua, em frente a um bar com torcedores uniformizados, espalhados entre as mesas de plástico amarelas, vi bandeiras, olhos brilhantes e tensões infantis em homens adultos. Gritos, explosões e, novamente, silêncio. Desamparo e euforia. Não sei se gosta de futebol, nunca te ouvir falar sobre partida alguma, astros, camisas e brasões, então não levei para casa.
    Poucos metros à frente do bar, uma casa antiga e um copo descartável, encaixado nas grades da janela doméstica. Era inusitada e também familiar a imagem, mas deixei onde ela estava, junto com o copo e um dedo de refrigerante ainda dentro. Para mim, bastaria para vencer a semana, mas não acho que era o suficiente para você.
 
    Depois, encontrei um grupo de pessoas, carregando gabaritos; garrafas de água mineral, quase vazias e barras de chocolate, quase inteiras, saindo da prova de algum concurso, que também um dia fizemos. Alguns cenhos franzidos e lábios cerrados de tensão passaram por mim e alguns ombros altos e cabeças erguidas também me encontraram. O que será que pensam? Talvez, como nós um dia, que a aprovação aliviaria todas as tensões, os medos, as insatisfações e incertezas. Tive pena, mas lembrei de nós. 
    Também não trouxe, porque não sei se é uma imagem feliz para você. Acho que tudo me alegra e, por isso, tenho dificuldades em estabelecer o ideal presente.
 
    Um cachorro caramelo me seguiu e embora eu tenha tentado explicar que eu não era a sua dona e insistido para que ele procurasse outras pernas, acabei por atravessá-lo por várias ruas, procurá-lo, esperá-lo e indicar os caminhos mais seguros, até me cansar da missão involuntária, enganá-lo em uma esquina próxima de casa. E desaparecer.     
     Sabe, talvez eu tenha feito isso, várias vezes, com humanos.
    Quis contar isso para você, quis perguntar isso para você: eu já me responsabilizei sem amar? Eu já me comprometi com quem insistiu em me seguir? Mas não acho que me ouviria, como eu preciso ser escutada. Não agora. Então também me esqueci do caramelo. 
 
    Andei por uma hora e já escurecia, quando vi uma árvore alta de flores avermelhadas, em frente à mata que cerca o morro, mas já estava escuro e eu não conseguirei descrever a cor da folhagem, embora possa afirmar, com toda certeza, que eram bonitas. Olhei profundamente para a imagem e pensei que no escuro também há beleza. Nada acabado. As folhas que iluminam o abismo. Um presente em ruínas, uma certeza sem luz. Por último, pisei em um sol amarelo, pintado na calçada perto de casa há algumas semanas. É gigante, engoliu o meu pé, mas também não é o presente que eu buscava.
    Eu saí para te trazer uma casa de paredes brancas com meio muro pintado de azul e uma varanda, mas ainda não encontrei. Quero salvá-la, mas não sei se posso. Por isso ando e faço promessas de varandas.

 


 

sábado, 26 de julho de 2025

Apenas um corpo no mar

    Uma mulher se levanta com dificuldade pela manhã. Atravessa o corredor escuro, pelas persianas ainda abaixadas da sala, vai ao banheiro, escova os dentes, lava o rosto e  se senta no vaso sanitário gelado. Quando a pele encosta na louça fria, a face se enruga e ela sussurra algum palavrão. Uma mulher pensa no quão difícil é ser mulher, enquanto esvazia a bexiga. Suas pernas pesam toneladas e ela se locomove lentamente e obstinada. Uma mulher orienta a própria existência como se praticasse um manual de gestos de sobrevivência. 
    Já não está mais na cama, lavou o rosto, escovou os dentes e fez xixi. Pequenas conquistas reverenciadas internamente.
 
    Uma mulher prepara o próprio café e puxa uma cadeira para se sentar, enquanto a água ferve no fogão. Olha para a louça na pia e se lembra da mãe que nunca ia para a cama à noite, antes de deixar a pia vazia e limpa.
    Uma mulher não é a sua mãe, mas se sente uma dona de casa relapsa.
    Depois, esquenta uma xícara de leite, porque a médica sugeriu que ela não tomasse café puro, já que a cafeína dificulta a absorção do ferro. Uma mulher se sente uma companhia mineradora.
 
    Enquanto toma o seu café com leite morno e come o pão com ovos mexidos, calcula o tempo que terá para lavar a louça, varrer a casa e tomar banho antes que o pai chegue com a madrasta. Os dias não têm sido muito favoráveis às visitas, mas eles vêm porque acham que podem ajudá-la a atravessar esse outro corredor escuro. 
    Uma mulher com uma xícara na mão e os lábios sujos de requeijão, olha para o teto da cozinha e pensa o quanto é bom ser amada e o quanto é pesado, às vezes. Encara uma teia de aranha no armário junto ao teto e não sabe se quer desfazer um lar.
    Uma mulher tem muitas decisões antes das oito da manhã e um cansaço descomunal; toda a sua existência tem sido orientada pelos manuais. Antes de se levantar, repete solitária na cozinha:
    — É preciso respirar. É preciso saber respirar. É preciso não afogar agora.
 
    Quando o pai e a madrasta tocam a campainha do apartamento, agora iluminado, ela abre a porta de banho tomado, com os cabelos ainda úmidos e um sorriso, desencadeado pelo manual. Almoçam juntos, ela fala da expectativa para os próximos dias:
    — Agora é só esperar. Não tenho mais o que fazer, senão esperar.
    O pai ouve, sorri, um sorriso que não é de manual, e emenda um assunto sobre alguém por quem ela não se interessa, aliás, poucos interesses ela tem tido ultimamente. Quando alguém pergunta como ela está, quase sempre se lembra de uma irmã do avô, que morava no interior de Minas Gerais, que respondia lacônica à mesma questão:
    — Se véve.  
    Queria só dizer também: 
        — Se vive 
    Embora o pai prossiga com a conversa cotidiana, a madrasta entende a angústia da inevitável espera, se aproxima, segura as suas mãos e, assim como ela, ouve atenta, embora desinteressada, os assuntos do marido.
 
    O três se sentam na sala e para não continuarem o assunto ou ficarem em silêncio, a mulher liga a TV e zapeia os canais. Pula o programa sensacionalista, por causa da violência, que nesses tempos a sensibiliza mais profundamente; pula a novela reprisada, porque não aguenta mais constatar que o galã de outrora é um radical da direita que recentemente despejou uma série de agressões degradantes nas próprias mídias; evita os realities, porque sempre a incomodou a exploração das individualidades encenadas, até que chega a um documentário. Aparece o fundo do mar, a narração é francesa, ela coloca o áudio em português, porque o pai não trouxe os óculos e os três assistem a um modo de vida muito diverso e dificilmente encenado.
    Este é um programa inofensivo para esses dias, ela conclui. O mar azul, a vida misteriosa que habita o universo com o qual eles nunca tiveram alguma intimidade, informações relevantes de vidas que dificilmente encontrão no seu habitat.
 
    Relaxada, a mulher assiste ao documentário, com os pés na mesa de centro e as costas enterradas no macio do sofá. Pela primeira vez nessa semana, ela é capturada por uma narrativa que não é a própria, uma existência que não está à espera de uma nova.
    Na tela, os polvos são descritos como as criaturas mais "inteligentes, adaptáveis e engenhosas da Terra". A beleza das cores, dos oito tentáculos que capturam, ajudam na locomoção, na construção de abrigos, na manipulação de objetos e a escapar de predadores. 
    Uma mulher com o corpo entregue ao sofá de casa, se esquece das visitas, dos manuais, das proibições, da meta de absorção de ferro, de ter que respirar, de não poder se afogar, das teias de aranha sobre os armários, da louça que está sempre em atraso, do corredor escuro que atravessa agora e flutua como um polvo faz na televisão. Tudo é um balé marinho, a vida será para além do que "se véve", quando puder se levantar.
 
    Até que no filme ao qual assistiam, que parecia mais arte do que ciência, aborda a reprodução dos polvos. A fêmea é a única responsável por cuidar dos ovos. Depois de fecundada pelo macho, a fêmea deposita os ovos em um lugar seguro e se retira da sociedade, se afasta de todos os outros polvos para se dedicar às vidas encapsuladas. 
    A informação desinquieta a mulher, até agora tranquila, então ela ergue a coluna para acompanhar o desenvolvimento da narrativa inesperada de uma fêmea que cuida dos ovos e que aos poucos, deixa de se alimentar, de se locomover minimamente, para proteger seus descendentes. A polvo fêmea, que há minutos atrás, se deslocava como uma bailarina dos mares, com leveza, liberdade e coragem, sucumbe ao processo e morre, quando os ovos eclodem.
     O documentário dos polvos na TV, a mulher no sofá com dois ovos no ventre, pensa no próprio destino e começa a chorar. Os pés inchados, a pele do ventre fina e próxima de um limite que ela teme conhecer, as costelas enredadas por dois corpos formados, os pulmões que não alcançam o ar que ela precisa diariamente. Tem medo e preferia ser um cavalo marinho fêmea a ser esse polvo de oito tentáculos que não alcançam nada. O pai pergunta se ela se sente bem, a madrasta entende o medo. Ela limpa as lágrimas e responde um melancólico:
    — Se vive. Mas queria ser cavalo marinho.


 

domingo, 13 de julho de 2025

Cada dois em um mesmo sol


  São os mesmos, embora sejam muitos outros. O mesmo sol, mas também, décadas de anos de sóis. Sentados no jardim babélico do prédio simplório, são dois, acompanhados de muitos outros, que os trouxeram até essa calmaria da manhã de inverno num domingo. 
  Ela está vestida com uma malha de tricô verde água e um cardigã de lã vermelho, o que me faz imediatamente lembrar da minha mãe e a sua composição de cores muito expressiva. Ela tem um corpo magro e de baixa estatura, é uma dessas idosas que parece diminuir de volume corporal a cada ano, até um dia desaparecer completamente. 
 
  Está sentada numa cadeira, muito bem posicionada no sol, e tem um ramo de flores secas nas mãos, que ora parece acariciar ora trançar como se dali saísse algo, como se as mãos produzissem um futuro. Ela não está só. Embora sua concentração no que tem nas mãos pareça afastá-la do presente. 
À sua frente, com os joelhos apontados para os da idosa, há um homem adulto, sentado em um degrau de cimento, que separa o jardim da entrada para o prédio. É um homem grande de cabelos pretos, lisos, cujo o corte lembra ao de um menino de onze anos. Seus ombros estão curvados, como se diminuísse a própria altura para se aproximar da velha mulher. É adulto, mas parece filho; e talvez por isso, e pela calça curta, pela camisa de botões e uma franja redonda que cai sobre os seus olhos, seja uma imagem pueril. Ele também tem um ramo seco nas mãos. Tenta imitar os gestos da mulher e estão em silêncio.
 
  São duas cabeças iluminadas pelo sol de julho, em um jardim que eu queria que fosse meu, em um prédio cuja pintura descascada expõe o fenecimento das coisas. São dois corpos próximos e gentis um com o outro, cujos joelhos apontam para um tipo de partilha que é terna e melancólica. Movem as mãos e não se olham, permanecem em um silêncio confortável que só é possível em uma intimidade antiga.
  Não sei como se sentem às dez da manhã de um domingo de inverno. Ele parece triste e ela ausente. Mas não parecem sós, debaixo desse sol que compensa todo o cinza da semana anterior. 
  Certamente esse domingo é único e o mesmo de muitos outros, quando eles tinham mais do que ramos secos nas mãos e menos tempo para o sol da manhã. 
 
  O prédio é baixo, o primeiro andar é no nível da rua,  duas gaiolas em duas janelas de um apartamento remonta a um passado próximo — no qual gaiolas não eram tristes — a fachada rosa desbotada, com o sol, fica mais bonita e ainda tem o jardim que é do prédio, mas que agora é deles dois. 
  O jardim é o menos arrumado possível, é uma profusão de espécies vegetais que se sobrepõem sem nenhuma geometria prévia, são cores, formas e texturas que se misturam; a desordem mais bonita, que também explica o que são as relações familiares. 
  O prédio descascado, com gaiolas na janela no Centro da cidade, o jardim com muro baixo, a placa de propaganda de coxinhas e dois adultos expostos ao sol do inverno parece coisa de um outro tempo.
 
  Ela na cadeira e ele no degrau em um jardim muito acessível, em uma comunicação sem palavras, sem olhares, ao menos no presente. As mãos dela inquietas, os dois com raízes e cores que se embaraçam numa profundidade que ninguém pode ver. 
  Acho que a tristeza nos ombros dele é pela perda iminente, acho que as mãos trabalhadoras dela é pela tentativa de permanência. Talvez ele já lamente a partida marcada dela e ela não autorize a sua maternidade de um homem já crescido. Uma mãe é uma mãe de uma pessoa a quem sempre poderá carregar; um filho cabe sempre no colo de sua mãe.
  Entendo o luto recíproco aos qual os dois estão submetidos nessa manhã tão pacífica e quente.   
 
  Quando ela deixá-lo, ficará o homem de cabelo tigelinha completamente órfão e irremediavelmente condenado à vida adulta. Um adulto que perde os pais, talvez a mãe ainda mais, fica vazio da criança em si. Porque aqueles que o viram sempre filho não estarão mais lá. É triste, bonito e caótico como o jardim no qual eles se fundem agora. Um dia, os joelhos dela não estarão tão voltados aos dele, um dia, as suas mãos serão para sempre quietas.
  A mulher sussurra alguma coisa, ele se abaixa um pouco mais para ouvi-la, depois, se levanta, busca um outro ramo de vegetal no jardim e entrega a ela, que volta os olhos e os trabalhos para a folha seca. 

  Aos domingos, dois quaram ao sol cerrados em si mesmos. Há tanta intimidade nesse desconhecimento. Ela não se lembra, ele a perde um pouco mais. Uma mãe e um filho fechados ao sol e entrelaçados sob  um mesmo solo; é esse o jardim que sempre se refaz. 

 


 

domingo, 6 de julho de 2025

Edita pra mim

  Alguém apaga a lata de lixo perto da porta e o maço de cigarro  em cima da mesa, dessa foto, por favor. Obrigada. 
  Edita para mim e tira tudo o que é cotidiano e doméstico, apaga da imagem a pessoa comum, cercada do ordinário e tira as lembranças de um lugar que não existe mais. A lata de lixo azul da casa, que a vizinha da frente deixou quando se mudou e falou que podíamos ficar com ela e o maço de cigarro da tia que morreu faz tempo. Apaga.
 
  Tem como editar e tirar essas pessoas do Arco do Triunfo, atrás de mim? Se alguém conseguir, agradeço.
  Me deixa em Paris sem transeuntes, apaga a bolsa neon do turista americano, o vendedor de livros usados, carregando sua mercadoria lá longe, os monges budistas de mantos terrosos, os turistas ajoelhados com as câmeras contra a luz, buscando o ângulo indelével da cidade que nunca está vazia. 
 
  Tem como apagar esse cachorro de rua que está na porta da igreja no meu casamento? É a foto favorita do meu álbum, mas com esse cachorro aí...
  Edita para mim e apaga o traço mais autêntico de qualquer cidade brasileira que é o cachorro caramelo religioso. Tem como deixar esse casamento imaculado, seguro de participação externa, um casamento de luxo, com equipe de seguranças, produtores de imagens, códigos nos convites e somente o ensaiado?
 
  Edita para mim e tira o meu ex da foto, é esse alto de camiseta vermelha. É a única foto que eu tenho da família inteira no último ano do meu pai ainda vivo e eu queria guardar.
  Apaga as decepções, a desilusão do sonho de uma vida partilhada que não se concretizou. Apaga as mentiras, as traições, a indiferença e a irresponsabilidade emocional. Apaga as promessas, as noites estreladas, o ombro no qual eu chorei quando soube que o meu pai estava doente, a mão que se estendeu quando eu fui demitida do trabalho, desligada do projeto e reprovada no concurso. 
  Tira o homem de camiseta vermelha que dirigiu apavorado por 600 quilômetros, quando eu disse que precisava. Apaga a minha dor e o abismo em que eu mergulhei, depois de conhecer a altura de um sentimento para o qual nunca se está preparada? Tem como editar e apagar a pessoa mais alta da foto e todas as marcas que ainda estarão aqui depois da edição?
 
  Edita pra mim e apaga a sonda do nariz do meu bebê? É a foto que restou de uma vida brevíssima do amor com o qual eu sonhei longamente durante a minha. Queria ter uma foto sem dor, sem as lembranças de um parto sem o cume do choro do filho, os dias de braços vazios e as noites vigiando o sono tão vulnerável que eu trouxe à luz e não pude mantê-lo mais acordado.
  Apaga toda a dor das semanas seguintes ao nosso primeiro olhar que não aconteceu no centro cirúrgico, só depois, atrás de um plástico e que mesmo assim me atravessa até hoje e o desespero da ausência de batimentos cardíacos trinta dias depois do nosso primeiro encontro. Reconstrói uma imagem que não aconteceu; meu filho sem sonda, um recém-nascido com futuro.   
 
  Edita pra mim e apaga a moça loira de cabelos longos da foto? Era minha amiga, mas agora é bolsonarista. 
  Apaga a desconfiança inicial, o susto, a desagradável constatação de um afastamento tão profundo, o apoio público dela aos discursos, às violências travestidas de cristianismo, apaga a minha vergonha de não tê-la conhecido antes. 
  Edita e retira dessa foto todos os sofrimentos que ela me ajudou a atravessar, os meus sonhos que ela incentivou, a generosidade do teto, do banho, dos livros e cópias que ela dividiu comigo. Apaga a minha admiração pelas suas renúncias e perseveranças. 
 
  Edita pra eles e me apaga das memórias dos outros com os quais eu rompi? 
  Quem me editaria na foto que não deveria estar mais? Que partes de mim deveriam ser apagadas e quais outras iluminadas pelo pincel de pixels do editor disponível? 
  Quais os álbuns que eu não frequentarei mais, inteira ou fragmentada? Meus ombros largos, meus braços brancos com pintas, minhas mãos de dedos longos e unhas quase sempre esmaltadas, meus dentes proeminentes e a ponta do meu nariz arredondada. 
   Edita pra mim essa memória e não apaga nada? Edita e realça os detalhes ordinários, as sardas, as cicatrizes, as calçadas acidentadas, as paredes descascadas, os copos de plástico, os bolos sem confeitos, os amores que passaram, as amigas para as quais nunca mais ligamos para desejar um feliz aniversário, os filhos que não pudemos segurar,  os cães de rua, os noivos da classe trabalhadora, as heranças baratas dos vizinhos. Não edita pra mim e não paga.