domingo, 17 de março de 2024

Canção para ninguém voltar

   Juntamos todas as cartas de baralho que ainda tínhamos em casa; reis, valetes, damas e coringas, de espadas, copas, paus e ouros, um monte delas e nenhuma que pudesse nos fazer melhores jogadores hoje. 
    Colocamos os baralhos em cima da mesa, como se preparássemos uma isca, algo que pudesse, de novo, nos atrair para uma última partida. Colecionamos cartas, por anos, esperando que elas sozinhas pudessem garantir partidas que nunca acabassem.     Aprendemos o tempo um do outro, prevíamos as jogadas prediletas, líamos a indecisão no cenho franzido, no lábio sutilmente mordido ou nas pernas inquietas debaixo da mesa, sabíamos ganhar e também perder; mas nada disso garantiu que permanecêssemos no jogo. Os montes de cartas estão à mesa, mas ninguém lançará sequer uma espada mais.
    — Escopa!
    Acabou o jogo.

    Cantamos, isolados, numa manhã, várias músicas do Clube da Esquina, duas ou três cantei toda a letra, o restante assobiei o que não sabia de cor. Você cantou o Corsário do João e eu não chorei; a solidão permaneceu geleira intacta. Nem Nascente nem Santo Amaro, nenhuma canção que nos mantivesse em par. 
    Nenhuma cifra, nenhuma nota, nada que nos fizesse cantar juntos de novo. Nosso repertório terminou e não garantimos nenhum coro, dueto ou aplauso. Finalizei com As canções que você fez para mim e nem eco fez. A música começou e morreu solitária em nós. Nem dança, nem ensaio, nenhum passo que sincronizasse o que já fomos. Não faltamos aos ensaios, descansamos a voz quando foi preciso, bebemos água e comemos maçã para mantermos hidratadas as pregas vocais; mas não bastou, desafinamos.
Tampouco embalamos um fim; não fomos capazes de manter o tom no concerto final.

    Esquecemos tudo o que não era bom, engolimos o choro, a raiva, a decepção. Negamos o ciúme, afastamos as diferenças, ignoramos os sinais vermelhos. Desmarcamos a análise, evitamos desabafar com os amigos em comum, ignoramos ligações, sinais e os avisos de que não ia bem. 
    Insistimos no retrato com presentes, declarações românticas públicas, comemorações oficiais e quase nenhuma celebração impulsiva. 
    Esquecemos, depois,  tudo o que era bom, despejamos o choro, a raiva, a decepção pela ilusão desmantelada. Nos queimamos em ciúme, assumimos diferenças irreconciliáveis e paramos no sinal vermelho, cada um numa rua. Desistimos dos acordos e dos planos, entregamos as chaves ao locatário e abandonamos os sonhos numa caixa de papelão sem etiqueta. Esquecemos que a falta não apaga o desejo e que o desejo existe também na falta. Só não esquecemos de apagar a luz. Andaremos tateando as paredes por algum tempo ainda.

    Lembramos da marca da ração do cachorro, dos dias dele com cada um, dos vasos de plantas que dividiremos e dos livros que precisamos separar. Mas lembramos também do aniversário do nosso afilhado, do dia da cirurgia da minha mãe e da formatura da sua irmã. Dos presentes que ainda vamos comprar, mesmo que não façamos juntos e dos que devemos devolver, porque usamos pouco e foram caros. 
    Lembramos que o final de domingo é sempre desolador para ambos, que o calor é insuportável para mim e arriscado para você, que o meu exame de vista está vencido e que o contato da sua podóloga está salvo no meu celular. Lembramos que dois ainda é bom e que um não era mais.

    Condenamos nossas liberdades em favor de uma tradição e, depois, nossos desejos em favor de uma deliberação com mágoa. Julgamos nossas infrações como delitos e nos culpamos pelo que não conseguimos mais jogar, cantar, esquecer ou lembrar. 
    Condenamos os nossos sentimentos e absolvemos nossas certezas. Impusemos o voto de silêncio ao que sentíamos e declaramos inocentes as falsas testemunhas. Desperdiçamos a liberdade provisória e permanecemos em prisão preventiva. Não há relaxamento de sentença a quem se julga culpado. Somos os dois no mesmo tribunal, somos juízes, defesa, acusação e suspeitos. Não há justiça isenta para nós hoje.

    Secamos a louça e as lágrimas; passamos os lençóis e a história limpo; incineramos boletos antigos e sonhos em comum, esvaziamos armários e planos, envenenamos os ratos e a confiança um no outro. Encaixotamos memórias e deixaremos que os fungos consumam lentamente as provas de que, um dia, existimos de outra maneira. 
    Abandonamos o tapete da porta de entrada, um porta-retratos com um casal do cinema italiano e um coração de conchas que ganhamos numa viagem de férias; para um dia, sentirmos saudades dos três itens absolutamente inusitados.
    Aguamos a jiboia, enquanto mantemos o nosso deserto inóspito. Ninguém entra sem anunciar e ninguém sai sem se desculpar; o último que ficar morrerá de sede.
 
    Faltaremos à audiência de conciliação, mandaremos nossos advogados cada qual com um acordo mais razoável possível, mas nenhum que possa devolver o que perdemos na saída. 
    Assinaremos a dissolução, mesmo sabendo que desde o último jogo de cartas já havíamos abandonado a mesa. Fica combinado: o cão comigo a cada quinze dias e o Clube da Esquina em um dueto imaginário. 


sexta-feira, 15 de março de 2024

Uma ilha tranquila dentro da tempestade

    Parece sexta-feira, fim de mês, parece término de ciclo. Parece segunda-feira, um novo mês, o despertar de outra fase. 
   Parece um vento que entra pela janela da sala e desestabiliza tudo. Faz com que a montanha de louça estremeça na pia, a pilha de livros fique um pouco mais torta, abala ideias, aumenta a chama que incinera sentimentos.      
    Parece agulha que arranha os discos, espeta convicções e faz pontos no rasgo tímido do peito, quase ignorado — não foi nada não!
    Parece emprego novo que perturba o sono da tarde, com as listas, as agendas, os montes de perguntas que eu não me importaria em responder em parcelas. O cartão é débito, o pagamento é inadiável. Minha inadimplência aparece, meu nome mais uma vez indigno de crédito.

    Mas parece também uma onda crescente de prosperidade que despeja na mesa de jantar toda a certeza do mundo. Ninguém mais magoará. A casa está limpa, o quarto aceso e a música voltou a tocar. O espelho não aflige, as mensagens que não chegam não importam mais. A hora do carteiro é irrelevante, o idioma não precisa mais de esforço; se o estrangeiro quiser conversação, ele que aprenda minha língua agora.
    Parece só moinho de vento, pode soltar a espada e relaxar na segurança. Tudo tão fiel quanto desenho de criança, olhos amarelos, cabelos de dinossauro, pernas de elefante. Parece a raiz de um problema arrancada. Não volta a crescer jamais.
    Parece tarde no sofá com um livro, com a sorte, com nenhuma palavra atravessada na garganta. Parece coaxar de rã no jardim, sem sapo nem príncipe. 

    Parece tormenta, tempestade no mar imprevista. Parece coletes de menos para muitas costas. Um comandante afônico, uma tripulação incapaz de ouvir ordens e o mar cada vez mais revolto. Parece que o bote virou e o resgaste custará a chegar. Parece braços dormentes de frio e uma quase desistência de nadar. Parece uma ilha muito longe e um mar muito, muito comprido. Parece que ninguém se salvará e talvez não queiram.
    Parece que o mar é o último lugar em vida e que afogar talvez seja menos doloroso do que queimar. Parece que a oração é para a salvação eterna e não para o desfecho na ilha. Num momento, o mar tranquiliza e nadar é menos torturante do que se deixar levar. A água salgada infinita do mar incorpora as muitas lágrimas. Parece que alguém grita: — Homem ao mar. Mas há muitas  mulheres também. E o grito é a ilha tranquila dentro da tempestade. Ninguém vai morrer sem esperança.
    
    Parece um amor bonito, sem preocupação estética, mas de suspensório e vestido de poás. Bonito de querer ter mais, de se sentir cheio, com entrada, prato principal, bebida, sobremesa e café. Uma comida caseira, que embora diferente, tem algo completamente familiar; lembra algo bom da infância, o tempero da avó, talvez. 
    Parece amor que dura, como do cachorro pelo dono, como o da menina pela professora, como o da criança pela rosa. Parece amor que desperta para ser livre, não faz chorar, não provoca dor ou insegurança. Parece fruto maduro, pronto para a mão ligeira alcançar. Parece uma ternura que acolhe, surpreende e não deixa cair no chão.

    Parece prova de matemática em maio. Manhã gelada, meu aniversário quase chegando, segundo bimestre e não saber nada. Parece a folha de papel com ideogramas completamente desconhecidos, mas exigindo resolução. Parece que vai ser, no mínimo, recuperação. E por isso o choro, o medo e o soluço interminável — liga para minha mãe. 
    Parece que nunca vai bem em exatas, parece que existe uma dimensão impenetrável neste mundo. Nem a curiosidade abre essa porta. Parece um túnel escuro e dá meia volta logo na entrada. O abismo de onde ninguém voltou.

    Parece que alguém lá fora chama e nunca foi tão silencioso tudo. Parece que há abraço, mão, um ombro quente que consola o vazio. E também é inútil chamar, ninguém vem, ninguém virá. A campainha tocou, palmas lá fora, os cachorros da rua estão em uma prosa infinita. Mesmo assim, a rua calada.
    Tudo é silêncio, crepúsculo e ninguém. Cadeiras vazias, gentes ocupadas. Tem o postal do palacete que não existe mais, um pé direito alto, com uma porta que parece baixa na fotografia. Mas que era imensa.
    Tem um casal de amantes que ainda não se conhece e o outro que se distancia. Torço para as vontades de todos, mas alguém certamente sairá contrariado; talvez os dois casais.

    Parece que o mesmo lugar onde termina é também o começo. A porta de saída, é quase sempre a mesma de entrada, só que com placas diferentes em cada lado. Numa prece pode ter raiva, num roupante pode ter afeto genuíno; numa prova de matemática, finalmente, a língua conhecida. Não precisa mais ter medo nem solidão, diz a música no carro. Todo dia e nenhum. 
    Parece que hoje é o início de um calendário de dias que desaparecem, até não doer e depois voltam, sem nenhuma burocracia prévia para existir de novo. É continuar a nadar e tentar não morrer.



domingo, 10 de março de 2024

Embora ainda não saibamos o ritual para despedida

    Há antes o ritual que precede o gesto. Mesmo aquilo que parece acostumado e mecânico, só acontece depois de alguma cerimônia. Por exemplo, antes de levar o lixo para fora, troca o sapato; há um par específico para tal empreitada. Vai até a área de serviço, descalça os sapatos de casa, abre o armário, pega o sapato de borracha grosseira, leva-o até a porta de entrada do apartamento, volta até os fundos, se abaixa, controla a respiração para não inalar, mais do que o inevitável, odor do lixo, confere os dois nós na boca de cada saco e só então, retoma o fôlego e de uma vez só, segura o lixo, abre a porta, somente encostada, entre a área de serviço e a cozinha, atravessa o corredor e depois a sala, calça o sapato à espera, na entrada, e com uma das mãos dá duas voltas na chave, enquanto segura o lixo na outra, desce os dois lances de escada, chega até o hall, atravessa o jardim, até que finalmente chega ao depósito e coloca cada saco de lixo no recipiente específico.

    Na volta, sobe as escadas com mais agilidade, já com as mãos vazias de novo, abre a porta, tira o sapato e, descalça, segue novamente até à área de serviço, onde guarda um par e calça o outro. 
     Antes de fazer o almoço e jantar, escolhe um álbum de jazz, e então, depois de iniciada a trilha sonora,  lava cada panela, concha, tábua e colher somente com um pouco de água corrente e seca com o pano de prato, ainda que tudo estivesse limpo nos armários; mas é o ritual. Como antes de sair, conferir se as janelas estão mesmo fechadas, se os tapetes estão devidamente esticados e as rugas na colcha da cama, provocadas ao sentar para calçar um terceiro par de sapatos, foram desfeitas com os dedos quentes.  
    Para receber visitas, é o bolo de cenoura que ela bate no liquidificador, o conjunto de xícaras que fica na cristaleira da sala e a alfazema que borrifa em lugares estratégicos: almofadas, toalhas de rosto e cortinas. 
 
    Só conheço as cenas pelo som habitual e recorrente há mais de quinze anos. Nunca testemunhei completamente suas cerimônias e gestos — talvez alguns recortes, quando eu a ajudava com as sacolas ou ela me convidava para um café — mas os reconheço profundamente pela audição. Sei a ordem, o ritmo e, inclusive, me norteava por eles. Quando a primeira música começava, era também minha hora de parar o trabalho e pedir ou fazer o meu almoço. 
    Moramos no mesmo prédio e isso nos ligou de uma maneira irremediável, ela é a minha vizinha de cima. E um edifício residencial é uma espécie de organismo, cujos apartamentos funcionam individualmente, mas que, interligados, produzem uma mesma frequência. É como se o apartamento da vizinha fosse uma nota e o meu uma outra que a corresponde em plena harmonia.Temos nossas singularidades, mas acabamos por funcionar sincronizadas.
 
    Há duas semanas, minha rotina se desestabilizou com o silêncio no apartamento dela. Eu e o gato nos atrasamos repetidas vezes, nosso almoço, meus e-mails e leituras, as sonecas e passeios dele, minhas corridas e o banho de sol dele. Nos tornamos mais sozinhos e ainda mais desorganizados.
    À princípio não dividi com o gato a preocupação com a saúde dela, há um surto, mas a idade dela não é avançada, há a fragilidade do corpo, mas as condições de atendimento médico dela não são as piores. Há o meu medo, mas há também a esperança de recuperação.
    Mas ao final das duas semanas, além de atrasados, nos tornamos menos confiantes; o porteiro, a síndica, o vizinho e o marido eram mais pragmáticos.

    Perdida, experimentei trocar os sapatos antes de levar o lixo e depois de voltar. Angustiada, adicionei álbuns e mais álbuns de jazz na minha lista de reprodução do tocador. Xícaras, bolos de cenoura, pratos lavados depois de limpos, tudo o que aproximasse a minha nota da dela. Tudo que me afastasse do silêncio dela. O gato também sucumbiu à tristeza e perdeu boa parte do apetite, mas me ajudou com a troca dos sapatos. E nada.
    Nem som, nem cheiro, nem nota que se complete à minha. Nem chaves, nem sacos de lixo ou sapatos grosseiros de borracha. A minha vida se modificou sem escolha, a do gato também é outra e ele só não reclama porque sabe que estou perdida.

    Hoje é tormenta; as janelas estão fechadas e o pano de chão dobrado na fresta da porta. Estou refém desse silêncio imenso que inundou meu apartamento desde que eu não pude mais ouvi-la. Não sei se é egoismo da solidão ou saudade de uma ternura que habitava meu cubículo dentro do peito. 
    Quando a partida é inevitável e a intimidade é pouca, paira a dúvida pela razão fundamental das lágrimas. É amor ou falta? Saudade de uma pessoa ou do que ela ordenava no meu mundo? E se amor é isso: o ritual da organização; a respiração síncrona, a resposta da nota?
 
     Chorei a manhã inteira pelo ritmo que se calou. Troquei os sapatos, fechei os sacos de lixo, mas fiquei completamente desamparada pelo soluço dele na cozinha, onde, antes, eu só ouvia o barulho dela. Agora ele tem uma partitura inteira para compor solitário, porque ainda não sabe de mim e do gato. 
    Foram muitos os rituais que aprendi com ela, mas o da despedida faltou. Permaneceremos calados e perdidos, até que eu descubra ou invente um.



domingo, 18 de fevereiro de 2024

As sete cabeças vulneráveis e o coração inviolável da hidra

    Sete cabeças a Hidra de Lerna ostentava em seu corpo de mulher; pavor de qualquer homem.
    Uma mulher com sete monstruosas cabeças, que se regeneravam a cada ataque. Cortar a cabeça da hidra não era o suficiente; atentar contra as cabeças da mulher era desperdício bélico. 
    Cada tentativa um renascimento. Imagina o horror: planejar, se armar, se colocar à distância calculada — nem mais nem menos —, acertar a cabeça, degolar, e antes de comemorar o feito, a cabeça partida voltava íntegra ao pescoço.
 
    Sete cabeças que não se curvavam ao inimigo. Sete consciências que não podiam ser submetidas. Sete mentes sobreviventes às violências. 
    Uma hidra-mulher que assustava os homens. Uma monstra de sete cabeças absolutas. Nada e ninguém a temer. Uma gigante que não podia ter qualquer cabeça ceifada.
    Sete cabeças de sonhos, planos, vontades, virtudes e defeitos. Sete cabeças prodigiosas e igualmente estúpidas.

    A mulher-hidra de cabeças indestrutíveis caminhava sempre só sob os ataques dos heróis gregos, que cobiçavam decapitar definitivamente a mulher-monstro.
    Cada cabeça uma teimosia, a insistência em não acabar. A Hidra de Lerna, caminhando sob chuvas de flechas, punhais e espadas; a Hidra de Lerna sem um minuto de paz.
    Cada cabeça uma demonstração de resistência ao perigo; a cada renascimento, um homem vingativo despontava.
    Sete cabeças que serviam ao medo, à curiosidade, ao desafio masculino; sete cabeças mais extraordinárias que as vidas felinas, porque essas sim se acabavam.
 
    Sete coroas caem ao chão, sete coroas voltam ao seu lugar. A cabeça da hidra sempre vulnerável, porque acertavam o alvo, mas também resiliente, porque logo se erguia antes de um novo ataque. Sete coroas que não se perdiam no sangue, na aflição, no barulho ensurdecedor das investidas hostis.
    Terá sido amada a hidra ou a mulher? Terá amado a mulher ou a hidra? Quem em Lerna teve algum sentimento pela hidra, que não o medo? Quem desejou proteger a poderosa Hidra de Lerna das armas dos filhos de Zeus? Em quais travesseiros terá a hidra sonhado? Em sete cabeceiras de cama ou em uma cabeceira em que coubessem os sete sonhos? 

    Sete grampos caídos dos penteados, sete secadores para  os cabelos compridos da mulher-monstro. Terá tido algum dia de relaxamento completo? Sem luta, sem ataque, sem rir dos heróis arruinados? 
    Sete cabeças com ideias síncronas ou sete conflitos cotidianos? Se uma cabeça decretasse uma sentença, como as outras se comportavam? As cabeças eram um time ou agiam isoladas? 
    Sete chapéus que não aproveitavam as férias ou o verão. Sete demônios que deveriam ser combatidos pelos anjos musculosos e a Hidra de Lerna para sempre atarefada.   
    Sete couros cabeludos escalpelados; sete cabelos refeitos em segundos. Sete maneiras de assistir ao morrer e nascer de novo. Sete fins e recomeços. 
 
    Sete longas tranças sem príncipe ou resgate. Sete cabeças ambicionadas. Sete alvos diários e a tentação constante de matar sete ideias.
    Para conter as cabeças da hidra só o fogo, depois do ataque. A receita do extermínio quem pensou foi também uma mulher. Nenhum herói se sagraria vitorioso se não fosse uma oitava cabeça feminina. A besta de sete cabeças nunca mais assustou. A hidra-mulher-dragão afogou em paz depois do fogo.
     O que nunca ocorreu aos guerreiros é que o coração da hidra era único. E mesmo depois de assassinadas cada cabeça, o coração permaneceu intacto. 
 
    Para cada sete cabeças vulneráveis, um coração inviolável de hidra. Em Lerna,  Frutal, Viena,  Alegrete, Hanói, Maragogi e Boston ainda há homens que tentam decepar cabeças que não podem ser arrancadas e ainda há mulheres-monstro cujo coração é incompreendido.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Adão e Eva ao contrário

    Ela não comerá a maçã, porque não é facilmente persuadível; você não dará costela alguma para que ela seja feita, porque a sua carne não é fundante da humanidade. 
    Dentro deste mesmo mundo, paraísos e desmoronamentos sucessivos. O belo e o feio numa mesma árvore sem nome. 
    A roupa já é mais por costume do que pudor, ninguém se envergonhará com o nu depois de uma mordida ou de um banquete completo.
    Nenhuma serpente os perturbará, mas todo o resto sim; os ciúmes, as investidas eróticas alheias, o tédio, aquilo que ficou para trás, as dívidas que contraíram quando construíram a casa.

    Ninguém comerá aquela maçã e os vizinhos saberão das discussões, das caras amarradas, da sogra que chegou sem avisar e ocupou todos os espaços do varal, onde vocês penduravam suas toalhas, depois do banho. 
    Nem todos os dias Vinícius de Morais tocará nas caixas de som do apartamento, pelo qual pagam longas prestações. O pão dormido, o bolo solado, o arroz empapado, o café ralo, a falta de açúcar e entendimento. O diálogo não há, não tem mais emoção na dispensa e chove muito para ir até ao mercado agora.
    Às vezes, no banho, lastimarão o abandono do barco em favor da casa. Às vezes, na cama, lamentarão os sonhos individuais perdidos em nome daqueles partilhados. 

    Ninguém nascerá de uma costela fundadora, ninguém será o osso inicial. As cortinas, os tapetes, os amigos em comum, as plantas que morrem diariamente afogadas ou secas, as viagens que não puderam concretizar, o armário embutido que por dois milímetros atrapalha a porta e as capas de almofadas sufocarão. 
    A labirintite da sua mãe, a sinusite do meu pai, o número do Pis/Pasep, o chá de revelação, o tamanho da fralda que veio no convite que se perdeu, nada disso foi a serpente quem provocou. Eva não tem culpa. Adão não foi enganado. Porque tudo isso já fazia parte do paraíso prometido.
 
    O Éden é também essa fumaça que vem da rua, esse espelho embaçado no banheiro, o lixo que ninguém leva para fora, o parto de fórceps de um dos dois, a escola montessoriana que um estudou enquanto o outro sentia náuseas com o aroma  do mingau de banana de todos os dias da creche a qual frequentou. 
    O Éden não foi destruído pela desinformação ou curiosidade feminina; o jardim não desmoronou pelo descuido de Adão.
 
    O pecado original é a poeira cinza que entra pela janela da cobertura, é o barulho que invade os fundos do apartamento térreo, é a tosse de madrugada pela fumaça dos carros que inalou, enquanto caminhava. O pecado desencadeador é o brilho perdido, a admiração que não se encontra, o inseto que rodeia a lâmpada e ninguém se levanta para ajudá-lo a encontrar a saída ou uma outra luz. O único pecado é entregar a pedra nas mãos de Sísifo sem assisti-lo na subida.
    A serpente não falará o mesmo idioma que vocês compartilham, não tentará persuadir Eva, tampouco sussurrará qualquer coisa para que Adão não desconfie. O pecado crucial foi quando a voz de Eva se tornou inaudível para Adão e ele irreconhecível para ela.

    Porque não existe Éden sem dor, não condenarão existência alguma quando findarem. É triste, mas também consolador que o mundo não se acabe depois de vocês. 
    Os vizinhos saberão de outros, os ciúmes cercarão terceiros e as suas ruínas não serão fotografadas, pesquisadas ou preservadas. O Taj Mahal já existe, a muralha da China não se moverá depois de vocês se apartarem. O mundo continua o mesmo e a história da serpente se repetirá pelas próximas gerações; embora a culpa de Eva pudesse ser dissolvida nessa. 
    O apartamento será financiado, de novo, para outro casal. Outro poeta deixará de frequentar a casa aos poucos e os insetos farão círculos de rasantes ao redor das lâmpadas que outros também não apagarão.

    Um homem e uma mulher podem mais do que fazer um filho. Uma mulher e um homem podem mais do que carregar o peso de um paraíso em desencanto. Adão e Eva podem salvar sua própria humanidade depois de uma demolição. O Éden não termina quando o último quadro é retirado da parede, mas quando ninguém mais se aproxima da moldura.