quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Muito além do destino...

  Ela era adolescente ainda, pouco mais velha do que eu, mas já tinha uma biografia e tanto. Basicamente, sua história estava atrelada as inconvenientes perdas, naturais, mas sempre tão injustas: mãe, casa, segurança, estrutura familiar. Éramos muito próximas e por isso acompanhei cada uma das suas primeiras dores, segurei sua mão, mantive-me ao seu lado constante, fiel e estrategicamente silenciosa, durante seus surtos de choro, incompreensão e dor. E, muito além do afeto natural, esbarrei no erro, que muitos também tropeçam, de me ligar ainda mais a ela, por pena. Queria corrigir o destino, oferecendo a ela o que eu achava que lhe tinha sido negado tão precocemente, fui paciente, compreensiva e bem humorada. E, quando estava com ela, carregava o fardo da responsabilidade de segurar nas mãos um frágil cristal, sempre em suspensão para queda.

  Todos ao seu redor se esforçavam muitíssimo, cada um a sua maneira, mas todos muito bem intencionados. Esperta, logo a menina apoderou-se da sua recente autoridade e ao sinal de uma mínima negativa, ela se adiantava em relembrar seus dramas pessoais. Enfim, não demorou muito para a adolescente de gênio dificílimo, tornar-se ainda mais difícil e "escravizar emocionalmente" qualquer um que se aproximasse. Os mais maduros, com o tempo, compreenderam sua estratégia e, aos poucos, tiraram-lhe o poder. E a cada desistência, eu me sentia ainda mais responsável por ela e sensibilizada com as "ausências" que se acumulavam na sua história. Nosso convívio não era diário, mas bastante frequente, logo eu comecei a me sentir "sobrecarregada"; meus finais de semana se assemelhavam mais a um campo de trabalhos forçados, do que colônia de férias. Ainda assim, mesmo contrariada, permanecia.

  Depois de mais crescidas, já não éramos tão próximas, mas eu ainda lamentava seu destino e relacionava suas dificuldades emocionais e sociais com a brutalidade das perdas que havia sofrido. Estava, certo dia, rodeada de outras amigas, envaidecida, exibindo uma foto minha que tinha saído no jornal local. Orgulhosa, feliz, repleta de uma estima por mim e pela possibilidade de algum talento, eu compartilhava minha alegria. Ao vê-la na porta de casa, convidei-a para se aproximar, eu não sabia, mas este era o dia que eu compreenderia que destino algum é o único responsável pela infelicidade de alguém e que por maior que seja a disponibilidade e vontade alheia, ninguém é capaz de nos trazer à luz, se a nossa opção é a sombra.

  A menina pegou o jornal das minhas mãos e desinteressada pelas histórias que eu agora dividia, animadamente, especialmente com ela, olhou-me com ironia e destilou, sem cerimônias, a crítica contundente, maldosa e certeira: ela escolhera  o ponto em que a minha fragilidade era imensa.

 O jornal amarelado eu ainda guardo, nossa amizade, que há muito já enfraquecia, apagou-se quase que completamente. Não a repeli instântaneamente, não retribuí sua aspereza, tampouco compartilhei com mais ninguém, além de quem presenciou o fato, o seu comentário cruel. Mas, naquele dia, eu aprendia que nenhum destino, por mais imprevisível, rígido e definitivo é o único ou o maior responsável por aquilo que nos tornamos. É inegável, que a vida da menina foi mesmo dura, mas o que ela fez, a partir da sua própria história foi infinitamente mais atroz. 

  Hoje a menina é adulta, à distância eu acompanho superficialmente sua trajetória. O pouco que eu sei é que ela continua apontando fragilidades, rasgando jornais, apagando sorrisos e cobrando da vida, o que não tem retorno. Desconfio que o destino mais triste é aquele que ela mesma escolheu para si. Eu desejo-lhe sorte, mas temo que não seja o bastante...


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