sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O pouco que transborda

  Alto, inquieto, hiperativo, sua movimentação constante me incomoda. Enquanto esperamos o ônibus, ele anda até a beirada da calçada e volta para o lugar de onde saiu, faz o mesmo trajeto diversas vezes, até afastar-se um pouco e acender um cigarro, estopim para os olhares de reprovação dos não-fumantes. Logo ele percebe o incômodo causado e ameaça apagá-lo, mas antes disso, um outro homem vem em sua direção e ergue seu cigarro ainda apagado. Os dois homens não trocam sequer uma palavra, mas entendem-se instantaneamente e, agora, são dois cigarros acesos, dois desconhecidos protegidos pela solidariedade entre minorias. O primeiro desconhecido, logo parece mais calmo, bem menos desassossegado, acho que nem tanto pelo cigarro, mas pela proteção recém adquirida; menos frágil, menos sozinho no mundo. Dois desconhecidos que apoiam um ao outro, sem palavra alguma, sem o compromisso de um histórico conhecido, sem laços permanentes, só o fogo de um cigarro, antes reprimido, que acompanhado, queima orgulhoso. E eu que não fumo, quase gosto de cigarros a partir dessa cena, tão masculina, tão sutil, tão prosaica, mas condenável sob os olhares da maioria dos espectadores.

  E a gente que, frequentemente, espera tanto pela solidariedade dos que nos são mais caros e que, tantas vezes, parecem ser os mais distantes, os primeiros a nos negarem proteção; podemos sempre ser surpreendidos pelo gesto de um desconhecido.

  O ônibus do desconhecido mais antigo chega, ele acena ao motorista, apaga o cigarro e não despede-se do amigo mais recente, não há necessidade de cerimônias, são laços de outra espécie. De um gênero que não requisita noções de etiqueta ou gratidão externada; são homens, são sérios, são adultos e seguem sua sina de pactos silenciosos sucessivos. Destas não-demonstrações de afeto (mas sentido no fundo da alma) é o que mais admiro no mundo masculino; seus silêncios, discrição, a dureza aparente.

  Meu transporte chega, abandono o outro desconhecido, agora fumante-solitário, preciso suportar os empurrões e pisões no pé, por apenas dez minutos e já quase nem me incomodo, minhas viagens já foram mais longas e duras. Olho pela janela do ônibus, para as luzes da cidade que ganham um cordão de luzes distantes a cada dia. Alguém toca minha mão, oferece para levar meus livros, o terceiro  desconhecido do dia oferece a única proteção que preciso: gentileza. Entrego-lhe meus livros e só por isso, desfaço-me de mais de uma tonelada de peso. Por dez minutos, alguém acendeu o cigarro que nunca fumei e o meu coração se aquietou.
 
  Quase sempre é  preciso tão pouco para ter-se tudo, mas que torna-se tanto, até transbordar. Pouco o que desejamos, pouco o que precisamos oferecer. A solidariedade mais genuína e mais bonita é aquela desinteressada,  aquela  entre dois desconhecidos.



Um comentário:

Ana disse...

As acções de genorosidade por parte de desconhecidos são as melhores, e tanto fica bem quem recebe como quem dá! É nestes pequenos gestos que acredito que ainda não nos desumanizámos completamente, enquanto houver cumplicidade entre desconhecidos, há esperança.