domingo, 25 de outubro de 2015

Agora, já pode olhar para baixo

   Pede um expresso na loja do centro, olha para frente, enquanto o café não chega e o som do sino de uma igreja ao fundo, marcando as horas, ritualizando os eventos religiosos deles e os mais íntimos dela e por mais longe que esteja, não há meios de não ouvir suas batidas; o próprio coração parece reconhecer o som e bater em sintonia, a respiração, de repente, também faz parte da orquestra. Biologia alguma explicaria um corpo que obedece a um som imaginário. Quarteirões há muito abandonados, ruas das quais não guarda mais os nomes, só os cheiros - do pão quente, do café recém coado, da vala com o esgoto a céu aberto da rua sem saída, do hortelã e da salsa na entrada do mercadinho - alguns rostos e o remoto som do sino que a persegue, avança mais do que o próprio caminho e vai a frente, anunciando que nem tempo, nem distância, nem desejo muito convicto podem mesmo apagar decisões antigas, escolhas perdidas, nem as cenas, as falas, os gestos ou as imagens impressas na alma.

  Era pequena quando o sino já ecoava nela, no começo, era só no sono. Enquanto dormia, num sonho chegavam as batidas,  o som longínquo não incomodava, pelo contrário, acalentava, fazia companhia e, por isso, dormia mais leve. Depois começou a acompanha-la também durante o dia, enquanto brincava, tomava banho, se vestia ou aguardava o jantar. Olhava para os lados, buscava nos olhos dos outros a cumplicidade do som, que nunca veio; e então, soube que o sino era só dela e nunca seria compartilhado. - Talvez os outros tenham outros sons, este é meu.

  Se a magoassem, a contrariassem, negassem a ela o que achava de direito, tinha um choro que parecia infinito. Deitava na cama, sofá ou chão e achava que era o fim; tudo terminaria em choro. Mas nada, os fins não vêm em choro, desconfio. Depois de alguns minutos, antes que o rosto secasse por inteiro, levantava de onde estivesse, saía pela porta e já estava curada. Mas nunca saiu sozinha, o sino a seguia. O incômodo que a fez chorar não era esquecido de súbito, só não se prendia muito a ele, entende? Num choro muito demorado, muitas oportunidades eram perdidas, a de sorrir, por exemplo. Ouvia o sino e, logo, a mágoa era lembrada, mas escolhia seguir, inclusive retomando os laços com os afetos que a feriram.

    Então, quando dizem a alguém, com muito medo de altura, para não olhar para baixo, desconfio da eficácia do conselho. Olhar para frente não diminuirá a altura, tampouco fará esquecer do perigo da queda. Os sinos continuam a tocar, nada é capaz de silenciar um som que nos acompanha. Segurar firme e seguir, mesmo com medo, me parece a melhor decisão.  Fechar os olhos, imaginar caminhos livres e menos tortuosos ou ocultar o antigo não durará muito, o som nos diz que a altura existe. Então, olha, olha sim. Mesmo com medo. Olha; porque a possibilidade da queda não é a certeza dela. A altura é um risco, mas também o impulso para a subida, uma sombrinha para o equilíbrio na corda bamba.

  - Já são seis horas!
  O sol resistente no horizonte, uma gota de suor por baixo da blusa escorre do colo até a cintura. - É a hora da Ave Maria. Abaixou a cabeça em respeito e, finalmente, olhou para o chão. Da altura que tem medo, mas que precisa enfrentar, nunca se esquece, nem deixa de olhar. Os sinos chamam para o final do café. Vira a xícara e retoma a travessia da corda. Pronto. Agora segure firme e olhe para onde os olhos quiserem ir.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Olá Amanda! O tempo vaga à Luz e eu divago à sombra. Em tese, olhando assim, teria tempo de sobra, mas a conta não fecha. Como não fecha com a memória. Gostei do texto, apesar de discordar da frase chave que o sustenta, talvez pela minha curiosidade ou da formação, sei lá.
E o medo, hem! O medo gera aquela descarga violenta de "adrenalina", onde nosso instinto de preservação animal grita de forma irritante - enfrente ou fuja - e dá energia suficiente para as duas situações, mas é complicado - aprendemos a sermos educados e engolirmos nossos medos - desta a forma a educação nos mata pouco a pouco. da próxima vez que tiver medo - grite, vá para cima, voe na jugular do medo, e que se dane o mundo, enfim morrer de medo não é só uma expressão - é uma confidência fisiológica - morremos de tudo, mas morremos muito mais de medo.
Mas, enquanto degustamos aqui este expresso (gostei disto), há no texto a simplicidade do realismo fantástico de Borges - é dele este aforismo que aqui subscrevo (no meu tempo era assim - subscrevíamos - hoje copiamos e colamos):
"Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos." - Jorge Luis Borges

Assim, a protagonista vivencia o que a ciência denomina de Memória Episódica, que é sabidamente reconhecida como uma parte da memória de longo prazo que se refere à nossa aptidão em recuperar experiências pessoais vividas no nosso passado. Então, como pode verificar, a Biologia explica, mas não tira o brilho desta sensação única e pessoal da moça.
A memória de longo prazo tem outras duas subdivisões, sendo uma a Memória Semântica, onde uma quantia da memória de longo prazo cuida para formular as nossas ideias, conceitos e significados e a Memória Processual, onde uma quantia da memória de longo prazo que auxilia-nos a lembrar de como perpetrar os eventos. (Ex: dirigir, atender ao celular, usar o computador, ler seu blog, etc).

Hoje fui mais docente, sei lá, é o vício da memória - um abraço forte.

Amanda Machado disse...

Que boa volta, Paulo! Nem sei se já disse (escrevi), mas suas visitas aqui são sempre muito ricas. E mesmo concordando ou não (como no caso), com a frase que fundamenta esse pequeno texto, você me trouxe Borges e essas explicações fabulosas da ciência, sobre memória (essa intrigante companheira que se ausenta quando mais precisamos e desenterra o que preferíamos esquecido). Para pessoas como eu, tudo é encantamento, mágica... mesmo a ciência. Obrigada pela visita ilustre!